quinta-feira, fevereiro 23, 2006

Os novos escravos e o meu amigo Agostinho da Silva

Quando a escravatura acabou, todos devem ter pensado que tinha sido de vez. Um fenómeno sócio-político de má memória chegara ao fim e não mais voltaria, terão pensado alguns.
Durante algum tempo assim sucedeu, pelo menos na face visível do fenómeno, já que nas zonas mais escuras, mais escondidas do controlo e da lei, tivesse continuado a haver escravos, não vendidos ou negociados, mas apenas explorados.
De 1415 a 1878, a escravatura teve existência legal. Desde a participação activa dos chefes africanos na captura e venda aos negreiros, da Igreja (especialmente dominicanos e jesuítas (estes possuindo mesmo navios destinados ao comércio dos escravos), até ao próprio Infante que, em 1443, chamou a si o monopólio da sua exploração, foram imensas as ramificações e tornou-se evidente uma organização perfeita, que se estendia das redes de captura, aos locais próprios de embarque e aos navios adaptados para este fim, não sendo descurados aspectos menores como a devida avaliação dos escravos, a sua marcação a ferro e, por fim, o leilão.
Supõe-se que durante esse tempo terão sido traficados 30 milhões de africanos.
Depois disso, aconteceu a Revolução Francesa com a sua divisa Egalité, Liberté et Fraternité. Seguiu-se a Revolução industrial e o desenvolvimento do mundo capitalista. A História dirá que nessa altura todos os homens eram livres. Palavras bonitas! Mas as mulheres não tinham direito a voto, raras frequentavam as universidades ou integravam o mundo laboral em posições de chefia.
É verdade que já não se compravam trabalhadores, mas a maioria não tinha emprego fixo e dependia totalmente do poder discricionário dos capatazes ou encarregados que, diariamente, seleccionavam uns quantos para o trabalho de cada dia.
Em 1913, a Revolução Russa apareceu como o verdadeiro fim dos «senhores» e o nascimento do poder do povo.
Depois desse marco histórico, as duas guerras mundiais não deixaram de passar por fases de dominação e exploração humana inqualificáveis, muito para além da que tinha acontecido na escravatura.
Entrou-se depois numa fase de alguma estabilidade, com uma melhoria significativa e real das relações sociais.
Por esse tempo já Agostinho da Silva, o «profeta do terceiro milénio», como lembrou Fernando Dacosta em artigo recente, reclamava o fim do trabalho e da exploração, a libertação do homem, o fim da escravidão do trabalho («o homem não nasceu para trabalhar»), o direito a comida gratuita para todos e o direito ao sonho e à liberdade.
Tive a sorte e o imenso prazer de conhecer pessoalmente Agostinho da Silva e receber dele com frequência, mas sem regularidade, os seus pensamentos-textos em A4, dactilografados uns (em máquina de escrever a necessitar de ser abatida à carga), manuscritos outros. Tive ainda a subida honra de ser por ele desafiado a fazermos um trabalho comum que, infelizmente, não se concretizou, por entretanto, se ter dado o desaparecimento físico do filósofo, do anarquista ou simplesmente do «paradoxo», como ele dizia de si.
Agostinho da Silva, ainda pode assistir a algumas conquistas do pós 25 de Abril que acabaram com uma nova escravatura dos trabalhadores rurais e de outras classes trabalhadoras, para quem o direito ao trabalho era adquirido diariamente ou semanalmente na chamada «praça», que outra coisa não era que uma espécie de leilão ou mercado de trabalhadores.
Agostinho da Silva apontava como certas, «a globalização neofascizante, o ressurgimento da escravatura e do feudalismo, a guerra civil entre os instalados no sistema e os excedentarizados dele (através de gigantescas rebeliões sociais), a perda de direitos seculares, as implosões da URSS e (proximamente) dos Estados Unidos, a hegemonia do imperialismo asiático­-chinês, a republicanização da Ibéria (futura península de nações independentes), a emergência do nosso país ao lado de Angola, Moçambique e Brasil (depois de periferizado na CEE), a ligação dos blocos de línguas portuguesa e espanhola e depois à passagem da era do trabalho para a do lazer, da sociedade do lucro para a da partilha».
Ele sabia, na verdade, que a globalização vinha aí, trazendo com ela ainda novas formas de exploração, de escravidão e dramáticas desigualdades entre os povos.
Neste momento, dois terços da humanidade vivem em condições inclasssificáveis. Milhões de seres humanos morrem à fome, enquanto no terço restante morrem de comida a mais.
Deu-se assim uma reviravolta no modelo de escravatura. Enquanto antigamente os escravos eram perseguidos, capturados e vendidos, contra suas vontades, agora a grande maioria deles oferece-se e aceita trabalhar e viver em condições desiguais e subhumanas.
Dizem as estatísticas que o lucro anual do tráfico de seres humanos anda à volta dos 12.000 milhões de euros, correspondendo a 30.000 euros o ganho médio por neo-escravo.
Os novos escravos oferecem-se mas, depois são enganados e explorados até ao inimaginável. As máfias controlam tudo. Retiram-lhes a identidade, estabelecem-lhes as obrigações laborais, cobram-lhes as despesas tidas com eles de forma deturpada, transformando-os em eternos devedores, cada dia mais dependentes do explorador.
As crianças, então, representam o que de pior há na nova escravatura. Calcula-se em 246 milhões o número de crianças exploradas no mundo, através das mais diversas formas e infames condições – prostituição infantil, trabalho escravo em fábricas para multinacionais, colheita de órgãos, práticas sexuais, algumas tendo a morte por fim, combatentes em conflitos armados ou como rebenta minas, um sem fim de maneiras qual delas a mais hedionda.
E, Agostinho da Silva dizia que – «Restaurar a criança em nós, e em nós a coroarmos Imperador, eis aí o primeiro passo para a formação do Império». «Um império sem clássicos imperadores, que leve aos povos do mundo uma filosofia capaz de abranger a liberdade por que se bate a América, a segurança económica conseguida pela União Soviética, e a renúncia aos bens que, depois de ter estado na filosofia de Lao-tsé, diz estar também na de Mao-tsé; mas uma filosofia que as três possam corrigir, purgando a primeira de imperialismos, a segunda da burocracia, e a terceira de catecismos».
Assim, seria possível valorizar aquilo que a seu ver nos distinguiria como povo e como cultura: um povo e uma cultura capazes de albergar em si «tranquilamente, variadas contradições impenetráveis, até hoje, ao racionalizar de qualquer pensamento filosófico». E «construir o seu domínio com uma base espiritual e sem base em terra, porque a propriedade escraviza e só não ter nos torna livres».

Estamos longe deste ideal de Agostinho da Silva. Se pensarmos que o desemprego cresce assustadoramente por todo lado, se pensarmos que em países tidos como ricos e poderosos como a Alemanha se está praticando, inclusive na Baviera, o chamado «One euro job», temos que concluir que está estabelecido um novo mercado de escravos. Basta imaginarmos a palavra do explorador – «Quem está interessado em ir mudar uns caixotes, em duas horas de trabalho? Quem quer ir lavar dois carros em hora e meia? Preciso de alguém para ir buscar uns pacotes de compras ao hipermercado em meia hora» e por aí fora o trabalho mais precário a um euro a hora. Não é imaginação. É realidade.
Penso que teremos de pensar muito bem nestes dois pensamentos de Agostinho da Silva que aqui vos deixo:
“Do que você precisa, acima de tudo, é de se não lembrar do que eu lhe disse; nunca pense por mim, pense sempre por você; fique certo de que mais valem todos os erros se forem cometidos segundo o que pensou e decidiu do que todos os acertos, se eles foram meus, não são seus. Os meus conselhos devem servir para que você se lhes oponha. É possível que depois da oposição, venha a pensar o mesmo que eu; mas, nessa altura. já o pensamento lhe pertence. São meus discípulos, se alguns tenho, os que estão contra mim; porque esses guardaram no fundo da alma a força que verdadeiramente me anima e que mais desejaria transmitir-lhes: a de se não conformarem».
«Estamos numa fase de pré-anarquia que vai levar-nos a uma nova Idade, mais humanista, mais espiritualizada … A sociedade civil alargar-se-á, o poder será descentralizado, o lazer libertará as populações, a palavra voltará a ter mais importância do que a imagem, as pessoas do que as coisas. O século XXI será religioso, fra­terno. É precisamente nos períodos de anarquia que se refaz a história, se criam ideias, se lançam ideologias.»

Seria bom que assim fosse. Não esperemos que aconteça. Façamos que aconteça
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