terça-feira, agosto 01, 2006

e, se eu vos contasse? – 18.º programa – a escola médica de santa cruz de coimbra

E, em 1143, houve nome Portugal. Antes, por terras de lusitanos, tinham andado bárbaros, uns mais do que outros, romanos e árabes e castelhanos, claro. A medicina na terra de lusitanos era aquela que os povos invasores praticavam. Unia-as a diferença e unia-as a falta de qualidade. Os homens que fundam a nossa nacionalidade herdam as práticas e o conhecimento que os invasores por aqui deixaram. Naquele tempo a medicina era muito pouco diferenciada e era transmitida de pais a filhos ou de emissores a receptores, que é como quem diz de quem quer ensinar a quem quer aprender. Um boca a boca permanente de transmissão de conhecimentos, mesmo que profundamente errados, como vieram a mostrar ser, a quase totalidade desse conhecimento. Havia já, embora em menor escala, um conhecimento, errado ou não, que não passava por transmissão oral, mas pela leitura atenta e prolongada dos textos que já havia, guardados em bibliotecas à guarda das ordens religiosas, na maioria dos casos. Por isso, cabia aos frades a aprendizagem e o ensino desses conhecimentos. Foi natural que sendo a acção médica apoiada no emprego mais ou menos empírico de plantas, chamadas medicinais, os frades tenham começado a encarregar-se, nas suas tarefas monásticas, de plantar, semear e cuidar dessas plantas mais conhecidas ou tidas por mais úteis. E assim nas cercas dos conventos começaram a aparecer os primeiros hortos botânicos. De entre as várias ordens religiosas existentes parece ter sido a dos beneditinos aquela que mais se distinguiu na prática e estudo da medicina.
Teriam sido, contudo, os frades do mosteiro do Lorvão os primeiros representantes da medicina monástica portuguesa.

As ordens religiosas tiveram, desde sempre, uma grande mobilidade que tem a ver com a acção missionária que sempre as caracterizou. Não é de estranhar, portanto, que nos conventos portugueses houvesse frades de outras nacionalidades, que com eles traziam os conhecimentos e as práticas dos países de onde vinham ou eram naturais. Por outro lado, os frades sempre foram dados à leitura, meditação e conservação das informações recebidas ou por eles produzidas. Os conventos tinham as suas próprias bibliotecas e durante muitos séculos nelas se depositava o que de melhor, e nalguns casos de pior, se tinha produzido pela mente humana.
Não se pode dizer, porque isso seria totalmente falso, que os frades do Lorvão e de conventos e ordens semelhantes, fossem grandes profissionais da medicina. Se nessa altura pouco se sabia, porque razão haviam eles de saber? Mas soubessem muito ou pouco, sabiam o suficiente para serem os melhores. De tal modo assim era que muitos frades dados à prática da medicina teriam sido bispos, não porque fossem os mais piedosos, caridosos e cumpridores da profissão de fé, mas por serem os mais hábeis a tratar e cuidar de nobres e de reis e que depois eram recompensados dos seus serviços com a atribuição de bispados, uma vez que lhes estava vedado o recebimento de dinheiro ou outros bens materiais. Mas, evidentemente, já naquele tempo e mesmo com frades, alguns houve que se esqueciam dessas recomendações e tinham um bolso grande que gostavam de ver bem cheio com moedas de ouro. Isso era tão escandaloso que foram publicados éditos vários desaconselhando a prática da medicina por parte dos frades.
No que respeitava à cirurgia, a sua prática era completamente desaconselhada aos frades, de tal modo que o Papa, durante o Concílio de Tours, em 1163, publicou uma encíclica chamada «Eclesia abhorret a sanguine» que oficialmente proibia a prática cirúrgica aos clérigos. Esta proibição foi promulgada pelo Papa Inocêncio III em 1215. O édito baseava-se no direito canónico – a culpa da morte de um homem anulava para sempre o exercício sacerdotal. A Igreja, enquanto instituição, viveu durante os séculos XI e XII muito preocupada com a prática da medicina por parte dos religiosos, de tal modo que esse assunto e preocupação foi tratado, que se saiba, não apenas no Concílio de Tours já referido, mas em vários outros, nomeadamente nos de Reims, Latrão, Montpellier, Paris e Le Mans.
Foi necessário chegar ao reinado de D. Sancho I para ser criado o primeiro embrião de uma verdadeira Escola Médica, que viria a ser instalada no Convento de Santa Cruz, em Coimbra, que estava a cargo e era casa dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho.Este convento tinha sido construído pelos monges procedentes de um antigo Instituto de Coimbra, chamado de D. Paterno e que desde sempre mostraram grande aptidão para o exercício da medicina. Foi fundado nos finais do século XI, com licença concedida pelo Bispo. Esta aptidão para a acção médica era também uma realidade no Instituto de D. Jardo, Bispo de Évora e Lisboa e que resultara da transformação em 1266 do chamado Hospital de São Paulo em Colégio de São Paulo, São Elói e São Clemente, onde foram admitidos dez capelães, vinte merceeiros e seis estudantes para fazerem estudos de latim, grego, teologia e cânones, e também no Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, nos Conventos de São Domingos e de São Francisco. Citei este número para mais podermos admirar a acção dos 3 únicos frades que saíram do Instituto de D. Paterno para se atirarem à obra de edificarem o Convento de Santa Cruz de Coimbra. Já o convento de Santa Cruz estava edificado e com frades bastantes, foi decidido pelo Prior enviar um dos frades a Paris para naquela avançada cidade se instruir em matéria médica e na acção médica de então, para que, depois, se pudesse dar início a uma escola médica naquele convento. Uma atitude inteligente e de aplaudir, tanto então como hoje. O que talvez seja de lamentar, então e hoje, é que o frade escolhido para ir para Paris tenha sido Mendo Dias, que era nem mais nem menos que sobrinho do Prior. Não está em causa se ele era a pessoa indicada. Talvez fosse. O que está em causa, então e hoje, é que à mulher de César não basta ser séria e é preciso que também o pareça. Então como hoje, um certo proteccionismo, uma certa forma de nos sentarmos à mesa do poder... Afirme-se também que depois de Mendo Dias, outros frades houve que também passaram por Paris...
Terá sido Mendo Dias a fundar a Escola de Santa Cruz, primeira escola médica de Portugal. Não temos que sobre ela emitir juízo de valor, pois ninguém hoje o poderá fazer com certezas e isenção. Só tem que se afirmar, e para que conste, que a Escola de Santa Cruz foi a primeira do país. Sobre isso parece não haver dúvidas. Já há dúvidas, contudo, sobre o nome daqueles que, durante o seu funcionamento, por lá passaram. Entre os habitualmente citados, destaco Pedro Amarelo, vindo expressamente da Colegiada de Nossa Senhora de Guimarães, pensa-se que para ensinar, uma vez que se sabe que ele teria sido médico de D. Afonso Henriques, depois de o ter sido do Conde D. Henrique. Também por lá teriam passado, quer a ensinar quer a aprender, Frei Gil de Santarém, figura extremamente controversa de homem devasso e dissoluto, cidadão do mundo, que acabou como frade, Julião Rebelo, pai de Pedro Julião, futuro Papa João XXI, Mestre Rodrigo, médico de D. Afonso II, Mestre Bartolomeu que teria sido médico de D. Afonso III, e, entre outros, Alle, médico mouro que terá sido médico de D. Afonso IV, e nomes sonantes da época, como Valesco de Taranta, licenciado por Montpellier depois de ter sido estudante em Santa Cruz, médico de Carlos VI de França e autor de várias tratados médicos de que se destaca pela importância que teve o «Philonium pharmaceuticum et chirurgicum», publicado pela primeira vez em Veneza, em 1490.

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