sábado, agosto 05, 2006

e, se eu vos contasse? – 21º programa – a aula de anatomia e cirurgia de chaves

No princípio do século XIX a situação médica em Portugal era ainda de grande primitivismo e amadorismo, apesar de haver Universidade há mais de 500 anos e a medicina ter evoluído alguma coisa durante esse longo tempo. No entanto, e apesar disso, os médicos em geral continuavam a estar mal preparados, e principalmente os cirurgiões, que continuavam a ser apenas uns curiosos com aptidões manuais para a arte da cirurgia. Havia quem dissesse que durante as guerras que Portugal foi travando ao longo dos tempos, a acção dos médicos e dos cirurgiões causavam tantos ou mais estragos nas tropas que as próprias armas e balas do inimigo. Exagero e má língua, evidentemente. A classe médica sempre foi uma classe caluniada e só é elogiada quando não pode mesmo deixar de ser...
Não se pense que a situação médica em Portugal era muito diferente da que havia nos outros países da Europa e que os médicos militares eram mais mal preparados do que os civis. Nada disso. Eram todos iguais. Mas os militares sentiam a necessidade de ter bons cirurgiões para poderem tratar os seus feridos. Daí que tenha surgido a ideia de criar Aulas de Anatomia e Cirurgia onde se ensinassem cirurgiões de modo a que, futuramente, se pudesse contar com a colaboração de melhores cirurgiões.
A primeira Aula que se criou foi em Almeida, zona do país onde havia um grande esforço de guerra na data em que foi criada, 1773. Passados dez anos foi criada a Aula de Elvas e três anos depois coube a vez a Tavira de ter a sua Aula de Anatomia e Cirurgia. Só 6 anos depois, em 1789 foi criada aquela que viria a ser a mais importante Aula de Anatomia e Cirurgia, entre todas as que foram criadas incluindo a do Porto, e que foi a Aula de Anatomia e Cirurgia de Chaves, praça de guerra fronteiriça com Espanha e através desta com a Europa. Há que ter em conta que estas terras onde foram criadas as Aulas eram terras onde se fazia um grande esforço de guerra, e que, por outro lado, eram pouco fornecidas de assistência médica civil; para isso contava a distância a que se encontravam da capital e das cidades mais importantes, estando completamente entregues ao abandono e aos cuidados de médicos pouco sabedores que só ali se fixavam porque não conseguiam vingar profissionalmente em terras mais prósperas e com concorrência de outros colegas. Claro que havia excepções e alguns bons médicos se fixaram nessas terras por razões de amor à sua terra e familiares.
Embora pudesse referir aqui as razões directas que levaram à formação das outras Aulas, vou contar-vos apenas as razões que levaram à formação da Aula de Chaves, cidade onde me encontro neste momento. Quis o acaso que a viúva de D. José, a Rainha Mariana Vitória, partisse a 9 de Outubro de 1777, para uma visita a Madrid e que o percurso escolhido incluísse nesse trajecto a passagem por Chaves.

Como era hábito em todas as deslocações reais, a Rainha e sua comitiva fizeram-se acompanhar dos seus médicos privativos. Era então médico da Casa Real, recém nomeado, Manuel José Leitão, homem inteiro, de carácter, bom profissional e zeloso da saúde dos doentes. Ao passar por Chaves ficou espantado com o que viu e decidiu imediatamente que tinha que fazer o que lhe fosse o possível para inverter aquela situação e dotar a cidade de bons cirurgiões. No seu regresso a Lisboa faz um requerimento em que dava conta do estado deplorável do hospital militar de Chaves, «solicitando a sua nomeação como cirurgião mor para a praça de Chaves com as funções de inspecção da cirurgia do banco tal como se passava no hospital de S. João de Deus desta Corte». Este requerimento não foi deferido e Manuel José Leitão insiste, oferecendo-se então para ensinar Cirurgia aos cirurgiões ajudantes dos Regimentos e a «todos mais que quiserem aprendê-la». Manuel José Leitão conseguiu apenas ser nomeado como cirurgião mor do Regimento de Cavalaria de Chaves e apenas em Março de 1786. Mas ele não era homem para desistir dos seus propósitos e há documentos que comprovam que em 1788 se perguntava a opinião do Governador das Armas sobre a pretensão de Manuel José Leitão de «formar uma Aula de Cirurgia». A sua persistência conseguiu os seus frutos e em Abril de 1789, o ministro Sousa Coutinho escrevia ao Governador das Armas, Gomes de Sepúlveda, dizendo que «a Rainha Nossa Senhora manda que se façam na Casa da Guarda da Madalena, os consertos e reparos necessários para que ali se instale a Aula de Cirurgia e Anatomia, para se dar princípio à leitura e operações com toda a brevidade possível e manda que aprove interinamente os estatutos que lhe serão apresentados pelo professor, devendo enviar uma cópia à Secretaria de Estado».

Manuel José Leitão tinha ganho esta batalha, mas não tinha ganho a guerra em que se tinha metido e que a partir dessa data se manteve sempre acesa entre ele e o administrador Frei José da Natividade, religioso da Ordem de São João de Deus e inglês de nação, por divergências permanentes quanto à forma de melhor se instalar a Aula. Com discussões ou sem elas, Manuel José Leitão, pôs rapidamente em marcha a instalação da Aula e requisitou o material necessário para as dissecções anatómicas e para as operações e partos. A relação dos instrumentos é muito curiosa, mas impossível de aqui referir na íntegra, mas obriga a que, pelo menos, se refiram duas coisas que ele pede, por serem particularmente curiosas – «uma parturiente artificial de camurça para nela aprenderem os praticantes as manobras dos partos. Um boneco de pau «vernizado» que represente um rapaz de 12 ou 14 anos, com gonzos nas pernas e braços para nele se ensinarem as ligaduras». E acrescenta – «este cá se pode mandar fazer». Não vou alongar-me a falar das guerras entre o professor e o administrador, mas sempre digo que foi de sempre a luta entre os médicos e as finanças. Não vou sequer deter-me nos pormenores das enfermarias. Dir-vos-ei apenas que elas se situavam neste edifício que ainda agora aqui se vê e em dependências por trás da capela do altar mor desta belíssima igreja. Mas não posso deixar de vos contar, porque isso se prende com as famosas Caldas ou Termas de Chaves, hoje mais procuradas que nunca (possuindo o balneário mais moderno da Europa e funcionando quase todo o ano), porque já naquele tempo, constava no plano de Manuel José Leitão a construção de um compartimento para nele se darem banhos das Caldas, «vindo a água em cargas desde o nascimento dela» e entrando directamente pela ponte romana pelo que «esta dependência deve ter uma porta para aquela ponte, evitando-se assim a carga ter de dar uma grande volta e subir muitas escadas».

Outra coisa a referir é a forma como Leitão entende que a enfermaria dos feridos deve ter uma comunicação fácil com a Aula de anatomia, para por ali passarem os cadáveres para as dissecções anatómicas sem serem vistos de fora e para que os seus fragmentos, depois de anatomizados, possam passar para o cemitério por uma escada de pau que para ela se pode fazer por estar muito próximo destas obras.
O curso que Leitão ministrava durava 4 anos e nele se ensinava anatomia, fisiologia, patologia externa, higiene, medicina operatória, arte obstétrica e prática e clínica cirúrgica que era a única cadeira do 4º ano.

Manuel José Leitão faleceu em 1797 e foi substituído por Manuel José Sampaio, interinamente mas «na esperança de o vir a ser de propriedade», o que não veio a suceder. Em 23 de Março de 1802 foi nomeado, por decreto real, Frei António de S. Frutuoso, homem de vários nomes e várias fés. De seu nome de baptismo, António José Rodrigues, entra ainda estudante para a Ordem de S. João de Deus com o nome de frei António de S. Frutuoso e por volta de 1815 resolve abandonar a ordem e secularizar-se adoptando o nome de António do Rego, nome com que embarca para o Brasil como 1º médico da Divisão de Voluntários do Príncipe. Antes de se ter formado em medicina em Coimbra aprendeu na universidade, matemática, filosofia e química. Frei António de S. Frutuoso não era cirurgião, mas sim médico, mas mesmo assim foi nomeado lente de cirurgia. Resolveu logo alterar o curso, passando este a durar cinco anos em vez dos quatro que até aí durava. No 1º ano dava anatomia, no 2º fisiologia e patologia cirúrgica, no 3º partos, matéria médica, preceitos de formular e vírus venéreo, no 4º princípios de cirurgia e operações e no 5º ano cirurgia prática. Só no 5º ano é que os alunos tinham autorização para frequentarem o hospital, para «tirar a história aos doentes e explicarem os sintomas».
Chame-se a atenção para o facto que Manuel José Leitão já tinha exigido que os alunos soubessem ler, escrever e contar, saber latim ou francês. Frei António de S. Frutuoso continuou a fazer esta exigência e acrescentou a Filosofia racional, mas tal não foi permitido porque «na província de Trás-os-Montes tal se não pode exigir».
Embora existam documentos que dizem que esta Aula de Anatomia e Cirurgia terminou em 1811, isso parece-me totalmente falso, pois existem outros documentos que se referem ao seu funcionamento ainda em 1814.

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