domingo, agosto 27, 2006

e, se eu vos contasse? – 31º programa – história das amputações e das próteses

As origens da cirurgia perdem-se na obscuridade. Sempre que se fala nisso, vêm à mente as várias descobertas do Mediterrâneo ao Peru, de crânios trepanados, prova segura que nos tempos mais longínquos, já se praticava esse tipo de cirurgia, sobretudo nas fracturas cranianas com afundamento. Já num destes programas fiz referência ao facto de se usar para fazer estas trepanações, pedras polidas e pontiagudas, muito antes de se usarem instrumentos de bronze ou ferro. Mas hoje o que eu vos quero contar é a história das amputações e das próteses e, por ser essa a minha ideia e intenção, teremos que avançar muito no tempo, pois existem poucos registos de elas se fazerem nos tempos mais recuados. As primeiras referências que aparecem relativamente às amputações corresponde ao início do século XIV, na altura em que aparecem pela primeira vez as armas de fogo e a pólvora. Pensa-se que o uso de armas de fogo, em acções militares, ocorreu em 1338 e muito especialmente na batalha de Crécy, em 26 de Agosto de 1346, quando Eduardo III de Inglaterra combateu Filipe VI de França. Contudo a primeira representação gráfica de uma amputação está reproduzida no livro «Fledtbuch der Wundartzney», do cirurgião militar Hans von Gerssdorf, mais conhecido por João Vesgo, por ser estrábico e que foi editado em Estrasburgo em 1517. Embora possa fugir um pouco da história que hoje vos conto, penso ser obrigatório dizer-vos que as feridas causadas por armas de fogo, levantaram inicialmente grandes problemas aos cirurgiões, porque estes entendiam que os projécteis disparados pelas armas de fogo, causavam três efeitos distintos no corpo do ferido e que cada um deles necessitava de tratamento próprio. Diziam eles que o projéctil provocava uma ferida contusa, o efeito da explosão provocava uma queimadura e a pólvora provocava envenenamento. Este tipo de pensamento e convencimento arrastou-se muito tempo até que um cirurgião mais atento e inventivo, resolveu investigar e verificar que nada se passava assim. Refiro-me a Bartolomeo Maggi que resolveu disparar balas de arcabuzes sobre a pólvora, o enxofre, a estopa e os fatos dos soldados e verificou que a bala não fazia arder nenhum destes elementos, o que facilmente provava que as balas não provocavam queimaduras. Verificou também que a ingestão de pólvora ou dos seus componentes não provocava qualquer envenenamento, acabando de vez com a ideia antiga de que a pólvora tinha esse efeito. Bartolomeo Maggi era cirurgião militar e professor da Universidade de Bolonha. Embora em vários escritos hipocráticos se faça referência a amputações devidas a gangrenas por isquémia, a verdade é que só com o aparecimento das armas de fogo é que as amputações se tornaram mais frequentes, especialmente as amputações acima do joelho, até aí inexistentes. Era sobretudo na guerra que as amputações se tornavam necessárias, pelo que se pensa que a guerra, as feridas e a cirurgia estão intimamente ligadas. Um cirurgião muito respeitado do nosso tempo, Bilroth, escreveu num livro seu sobre história da medicina que Hieronymus Brunschwig terá sido o primeiro a realizar uma amputação acima do joelho, em 1497. A partir do momento em que se começaram a fazer amputações correntemente, levantaram-se várias opiniões e várias correntes sobre os procedimentos devidos e correctos, para obter melhores resultados, no que respeitava a evitar dores aos doentes e conseguir uma boa sobrevida, principalmente. A primeira questão que se pôs e se arrastou longo tampo, diria longos séculos, foi a escolha do local para a amputação. Inicialmente, todos faziam as amputações a nível dos tecidos macerados ou necrosados e gangrenados, porque diziam que o doente tinha menos dor se a amputação fosse feita a esse nível e porque estavam convencidos que se evitava dessa maneira a infecção. É evidente que acabou por se entender, como hoje o entendemos, que o local escolhido para a amputação deve permitir fazer a incisão em tecido são e com absoluta garantia de que os bordos da pele estão vivos. Outro dos pontos muito controversos, era o problema da hemorragia dos vasos seccionados. Durante a maior parte do tempo, o processo usado assentava na acção do fogo e do calor, utilizando ferros postos em brasa, os chamados cautérios, para provocarem a hemostase e complementarmente evitarem a infecção e a putrefacção. Existiam cautérios dos mais diversos feitios e tamanhos e aplicações. Havia ainda alguns que usavam facas em brasa para obterem o efeito dos cautérios ao mesmo tempo que cortavam os tecidos. A ideia era engenhosa e ainda hoje se aplica esse princípio através do chamado bisturi eléctrico, que nas últimas décadas sofreu muitas beneficiações e modificações.No século XVI, apareceu esse grande mestre da Cirurgia, para sempre o pai da Cirurgia e sobretudo da Cirurgia Militar, o grande Ambroise Paré, que chamou a atenção para o facto que os cautérios não correspondiam ao efeito pretendido e mostrou que a melhor forma de resolver o problema da hemorragia era laqueando os vasos um a um, assim conseguindo um efeito total e de acordo com o pretendido. Paré não conseguiu generalizar este seu avançado e lógico método, porque a sua aplicação implicava o uso de mais ajudantes e de mais tempo de operação, já que segundo Paré havia necessidade de fazer 53 laqueações e nunca menos de 25, se dispensássemos os vasos de menor calibre, na amputação pelo terço inferior da coxa.Havia cirurgiões que para usarem este método diziam que precisavam de 6 ajudantes, sendo três para segurarem o doente... Foi igualmente Ambroise Paré quem modificou o método tradicional de resolver o problema da infecção e realizar, sem ter essa ideia cientificamente pensada, aquilo que hoje chamamos o desbridamento das feridas, isto é a eliminação de todos os tecidos necrosados. Usava-se habitualmente o azeite a ferver, que de certo modo funcionava também como os cautérios, mas chegando a pontos onde este não conseguia chegar, porque o azeite era líquido. Ora uma noite, na frente de combate, ainda Ambroise Paré era cirurgião do marechal Montjean, a meio do tratamento dos feridos, acabou-se o azeite. Então Paré resolveu aplicar outro líquido, uma mistura de gema de ovo, mel rosado e terebentina e, no dia seguinte, pode verificar que aqueles que tinha tratado com esta nova mistura, tinham menos dores do que os tratados ainda com o azeite e os tecidos e as feridas tinham melhor aspecto. Isto representou um grande avanço no tratamento dos feridos. É obrigatório que vos diga que durante a Guerra Civil americana, em 1864, se voltou a usar a terebentina na frente de combate e em 1966, quer dizer, há escassos 34 anos, Waid Rogers, escreveu um artigo em que dizia que a terebentina numa concentração de 0,002 cc por litro, tinha efeito bacteriostático sobre o estafilococus aureus e sobre a escherichia coli. Kock, recomendava que os cirurgiões e ajudantes usassem a terebentina na desinfecção das mãos. Outro ponto controverso era o encerramento ou não da ferida operatória. Feita a amputação deviam os dois retalhos ser ou não encerrados, suturados? Havia, como nos outros pontos, duas correntes principais. A daqueles que defendiam o encerramento imediato da ferida operatória e a daqueles que, pelo contrário, pensavam que era melhor deixar cicatrizar por segunda intenção, para evitar a infecção e garantir a sobrevida. É evidente que neste caso ambas as correntes podiam ter razão, se isso implicasse um conhecimento profundo daquilo que preconizavam, o que, de modo nenhum, era o caso. Hoje, é procedimento corrente não encerrar em todos os casos infectados ou muito contaminados e encerrar imediatamente em cirurgia limpa e asséptica. Mas as controvérsias não ficavam por estes casos que apontei. Diferiam uns dos outros quanto ao tamanho dos retalhos, quanto a meterem o coto numa bexiga de porco ou não, quanto a usarem apenas um garrote, ou dois ou três. Em seccionar ou não entre os dois garrotes mais inferiores, em amputar imediatamente após terem sido feridos ou aparecido a gangrena ou esperar para ver, como Hipócrates, e diferir a operação para muito mais tarde, dias ou meses. Também se discutia se as facas de amputação deviam ser curvas ou rectas, compridas ou curtas. Sobre nada havia ideias claras. E… não havia anestesia. A única era a esponja soporífera e com Ambroise Paré, a anestesia local obtida pela compressão dos nervos acima do local de corte ou com Larrey o uso do frio. Por isso, as amputações representavam autênticas competições olímpicas de rapidez cirúrgica. Tinha-se como correcto que uma amputação deveria demorar entre 7 segundos e três minutos. Ouviram bem. Sete segundos... O muito conhecido cirurgião Dominique Larrey, que trabalhou em várias frentes de combate acompanhando os exércitos napoleónicos, desde a Rússia a Portugal, e considerado o maior especialista da época em amputações, diz nas suas memórias que durante a campanha da Rússia, na batalha de Borodino, tinha feito nas primeiras 24 horas, duzentas amputações, o que equivale a uma amputação por cada sete minutos, com uma taxa de sucesso de 75%.Larrey era um grande defensor da amputação imediata, o que levou a que muitos o considerassem demasiado intervencionista, um maníaco das operações! Larrey defendia que sempre que a extremidade do membro se encontrava muito danificada, a amputação imediata podia salvar a vida do doente, enquanto a cirurgia diferida se mostrava perigosa e punha a vida do doente em perigo. A falta de anestesia tornava a rapidez com que a amputação se fazia, numa meta a atingir por qualquer cirurgião, pelo que, naturalmente, se pensava que grande cirurgião era o que conseguia amputar em menos tempo. O grande cirurgião Jacques Lisfranc que dissecou mil cadáveres no Hospital de la Pitié, de Paris, durante um ano, para dar as suas aulas aos alunos de medicina, chegou a fazer uma amputação da coxa em 6 segundos...Benjamin Bell, de Edimburgo, conseguia fazer a amputação, até ao osso, também em seis segundos. O tempo médio de Larrey era de três minutos e nas desarticulações do ombro, em que ele era considerado verdadeiro mestre, diz ter feito uma em 17 segundos. Fergusson, dizia que um cirurgião competente deveria estar habilitado a fazer uma amputação entre 30 segundos e 3 minutos. James Wood, de Nova Iorque, amputava pela coxa em 9 segundos. O professor de fisiologia Frederick Scott, contava, como sendo verídico, que tinha assistido, enquanto ainda estudante, a uma amputação pelo 1/3 superior da coxa, em que o cirurgião com a rapidez, tinha cortado dois dedos a um ajudante e os dois testículos do doente... Não se sabe se esta história é verdadeira, mas sabe-se que foi certo que o cirurgião Valentine Mott, em 1860, ao fazer uma amputação num cadáver perante os alunos, cortou um dos seus dedos, que terá metido na boca, sugado e depois o terá envolvido num lenço e continuou a amputação como se nada se tivesse passado.Conta-se que um dos alunos terá metido o dedo cortado do Dr. Mott dentro de um frasco com alcoól, para o conservar como prova desta história. È difícil termos uma ideia da mortalidade operatória, sobretudo até à quarta década do século XIX, uma vez que antes disso, são raros os escritos médicos que lhe fazem referência explícita. A partir daquela data começam a aparecer as taxas de mortalidade que variam entre 8 e 48%. Paré referia algumas vezes a mortalidade, mas nunca o fez considerando a totalidade dos casos. É evidente que a taxa tinha forçosamente de variar consoante os casos que levavam à amputação e consoante os locais onde ela se fazia, especialmente no campo de batalha ou no hospital. Ambroise Paré, pai da cirurgia militar, escreveu vários livros em que trata pormenorizadamente destes factos. Por outro lado, era um homem com grande sentido estético e com grande habilidade para o desenho, o que levou a aplicar esta sua habilidade nata na sua paixão e profissão, a cirurgia. Por essa razão, o material cirúrgico de que Paré se servia era, para além de eficaz sob o ponto se vista cirúrgico, verdadeiro objecto de arte e de grande beleza. Os punhos das suas facas de amputação, por exemplo, são uma boa materialização daquilo que acabei de dizer. Talvez esta habilidade, mas fundamentalmente a sua inata qualidade de investigador e a sua desmesurada entrega aos doentes e à cirurgia, o tenha levado a inventar uma quantidade grande de próteses metálicas para substituírem os membros amputados.A esta distância não se consegue imaginar como seria possível aos doentes carregar próteses tão pesadas como aquelas parecem ser. Hoje, que em cada instante se luta por conseguir próteses mais leves e mais funcionais, à custa da descoberta de novos materiais, que ofereçam resistência e leveza ao mesmo tempo, custa admitir que tivesse havido alguém capaz de carregar tal peso permanentemente.E para além do peso, coloca-se a pergunta de como reagiria o coto ao contacto com aquelas superfícies metálicas, mesmo que possivelmente revestidas interiormente a couro. Hoje, que os cirurgiões têm o especial cuidado de conseguir cotos bem almofadados e em que a cicatriz operatória não se encontra na zona de contacto ou de pressão, não se imagina quão grande seria o sofrimento daqueles doentes amputados com problemas permanentes a nível do coto. Não há informação sobre estes problemas o que só prova que isso era matéria secundária. Naquele tempo o importante deveria resumir-se ao possível – amputar rápido, conseguir que o doente não morresse e depois arranjar-lhe uma prótese, fosse ela como fosse.

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