quarta-feira, agosto 17, 2011

mais um tiro no pé, senhor presidente


No Espaço público do Jornal Público do passado dia 10 de Agosto, publicou Arnaldo Saraiva (ensaísta, professor catedrático jubilado da Universidade do Porto), um magnífico artigo sobre a já habitual e esperada pontaria dos tiros decisórios do senhor presidente da República.
Porque entendo que se trata de um artigo que merece a atenção de todos, curto, incisivo e bem escrito, aqui o deixo para aqueles que visitem este blog.
Os tiros no pé não costumam ser mortais, mas são muito dolorosos e, quando frequentes, diminuem consideravelmente a base de sustentação do atirador.

«Para que serve o Conselho de Estado? Trata-se do "órgão político de consulta do Presidente da República", mas podemos pôr em causa a sua necessidade, a sua utilidade e a sua constituição; podemos perguntar-nos se ele não serve apenas para aumentar o número de artigos ou de páginas da Constituição (parte III, título II, cap. III, art.os 141-146), de leis (31/84; de 6/9) ou a burocracia, regalias, despesas e algumas projecções balofas.
Será que sem o Conselho de Estado o Presidente da Re­pública não poderia consultar e convocar, individual ou colectivamente, os que por inerência fazem parte desse Conselho - os presidentes da Assembleia da República, do Tribunal Constitucional e dos governos regionais, os antigos presidentes da República, o provedor da Justiça - e 10 "cidadãos" escolhidos pelo próprio Presidente da República e pelos partidos?
Será que sem o Conselho de Estado não haverá "ho­mens bons" ou boas mulheres para aconselhar o Presi­dente em tempos de paz e de guerra?
O que se sabe da história do Conselho de Estado, dá-o como uma desnecessária extensão da Assembleia da República, ou então como um ainda mais inútil poleiro dos partidos maioritários. Mas a constituição do actual Conselho de Estado, agora que Cavaco Silva indicou os 5 membros que por lei lhe competia indicar, pode suscitar reflexões expressivas.
Notemos por exemplo que ele só tem duas mulheres (Assunção Esteves e Leonor Beleza); que não tem ninguém à esquerda dos 5 socialistas (Mário Soares, Jorge Sampaio, Carlos César, Manuel Alegre e António José Seguro); que, com a excepção de Luís Filipe Menezes e dos presidentes das regiões autónomas, não tem ninguém de fora de Lis­boa; que não tem ninguém que represente a Igreja Católica (cuja importância histórica os políticos, mesmo os ateus e os agnósticos, costumam assinalar, supostamente sem hipocrisia); que não tem ou só tem um representante ge­nuíno da chamada "inteligentsia" sem política - das artes, das letras, da sociologia, da história, etc.
Se à partida havia o condicionamento legal e talvez discutível das inerências, se os partidos escolhem co­mo regra gente dos partidos - como se um Conselho de Estado devesse reger-se por uma lógica partidária -, competiria sobretudo a Cavaco Silva tentar estabelecer um pouco mais de equilíbrio ou de representatividade simbólica na constituição do órgão que o deve aconselhar, e em que seria à primeira vista proveitosa ou fecunda a existência de vozes bem distintas.
Mas não: ele escolheu João Lobo Antunes, Marcelo Rebe­lo de Sousa, Leonor Beleza, Vítor Bento, Bagão Félix. Quer dizer: escolheu só gente da sua área ideológica, engordou ainda mais a representatividade do PSD - que já tinha o poder de um Presidente, de um primeiro-mínistro e de uma maioria -, lisboetizou ainda mais um Conselho que ganharia em ter maior representatividade nacional, privi­legiou ainda mais a política dos políticos (sem se dar conta de que a política é coisa demasiado séria para que possa ser confiada apenas aos políticos profissionais), mostrou-se desatento lá onde poderia ser clarividente - por exemplo, recuperando Gomes Canotilho, que, por conveniências partidárias, deixou de fazer parte do Conselho, ou esco­lhendo um homem como o que ao longo de décadas mais e melhor pensou sobre Portugal, Eduardo Lourenço.
O Conselho de Estado vale o que na realidade vale, mas vale também simbolicamente. Como presidente desse Conselho e Presidente de Portugal, Cavaco Silva, que outrora escolheu Dias Loureiro para o Conselho de Estado, acaba de dar mais um tiro no pé - dele e dos portugueses».

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