quinta-feira, agosto 10, 2006

E, se eu vos contasse? – 24º programa - história da tuberculose e dos sanatórios

Seria imperdoável que num programa deste tipo, em que tenho vindo a tentar contar-vos um pouco da história da medicina, de uma forma simples e curiosa, sem nunca esquecer os factos mais importantes, que eu não vos contasse a história da tuberculose e dos sanatórios, sua história mais recente. De facto, esta doença representa um caso muito especial e particular na história da medicina e das doenças, uma vez que a ela estão ligados factos e pessoas que foram um marco na história da humanidade. É uma doença antiga, já conhecida antes de Hipócrates e Galeno, embora tenha sido Hipócrates o primeiro a dedicar-lhe atenção e a escrever sobre ela no seu Corpus Hipocraticus, onde a designa por tísica, palavra que em grego significa emagrecimento e termo que atravessou os tempos, ainda sendo usado por muita gente em pleno século XX. O achado mais antigo sobre a tuberculose corresponde à descoberta em 1907, de um esqueleto de um jovem, em Heidelberg, com uma idade atribuída de 5.000 anos e que apresenta lesões muito sugestivas de lesões tuberculosas da coluna dorsal, em tudo iguais às que hoje designamos como Mal de Pott. Há vários casos de tuberculose óssea encontrada em vários outros esqueletos que foram sendo encontrados, dos quais o mais famoso caso é o de uma múmia de um sacerdote de Amon, de 1.000 anos A C., que apresenta a deformidade típica da coluna provocada pelo Mal de Pott. E há sobretudo um caso, mais recente, datado de 700 anos D. C., que foi exaustivamente estudado, de uma criança peruana, onde os cientistas encontraram tubérculos no pulmão direito e na pleura, fígado e rim e, espantem-se senhores, e também bacilos alcool resistentes como aqueles que só no século XIX, mais propriamente em 1882, Robert Kock haveria de descrever e de baptizar como mycobacterium tuberculosis, desde aí mais conhecido como bacilo de Kock, em justa homenagem ao seu descobridor. Depois de Hipócrates, vários médicos se referiram e dedicaram trabalhos à descrição pormenorizada da tuberculose – Avicena, Paracelso, Frascatoro – e Zacuto Lusitano e Curvo Semedo, entre os portugueses, foram aqueles que mais atenção lhe dedicaram, mas que continuaram a demonstrar uma grande ignorância ou desconhecimento do que é realmente a doença. Curvo Semedo, por exemplo, escreve que a doença pode ser transmitida pela saliva, o que parece um progresso, mas, ao mesmo tempo, escreve também que se «o doente escarrar para o lume seca-se-lhe o mal consoante se lhe secar o escarro»... Esta quase total ignorância continuou até ao século XIX, altura em que Robert Kock identifica o bacilo da tuberculose e em que alguns outros progressos são feitos que, de uma forma ou de outra, se vão repercutir num melhor conhecimento desta doença. Foi o século em que Roentgen descobriu os Raios X, Pasteur revela os seus trabalhos fundamentais, Laennec descobre o estetoscópio, acabando com a auscultação directa. Curiosamente Laennec morreu aos 45 anos vítima da tuberculose, tal como Bichat, esse grande patologista que tantas autópsias e estudos tinha realizado em doentes tuberculosos e que desta doença tinha sido vítima anteriormente a Laennec. Foi também no século XIX que o médico militar Villeman, mostrou que a tuberculose devia ser considerada uma doença específica e infecciosa e não, como até aí, orgânica e hereditária. Contagiosa, sim. Depois da descoberta de Kock em 1882, os factos mais importantes na história da tuberculose, estão ligados a Von Pirquet e a Mantoux, que inventa um e aperfeiçoa outro, a prova ou teste de sensibilidade à tuberculina, permitindo assim a partir dessa data, um despiste de doentes, já no século XX, em 1907. Em 1920, Aschoff, descobre que a tuberculose se processa em duas fases distintas – a da infecção e a da doença – e apenas um ano mais tarde Calmette e Guérin descobrem a vacina contra a tuberculose que designaram por BCG, que assim perpetua os seus nomes. Tudo isto em termos de investigação sobre a doença. Mas, no que ao tratamento respeitava, não havia quaisquer progressos assinaláveis. Para além da atitude louvável de começar a tratar os doentes em repouso e em locais altos, base do princípio que haveria de levar aos sanatórios do século XX, pouco mais havia. Apenas na passagem do século XIX para o XX, Carlo Forlanini introduz o chamado pneumotórax terapêutico e, juntamente com um seu irmão engenheiro, inventa o aparelho que lhe permite realizar esses pneumotórax terapêuticos. Depois apareceu aquilo que o comum dos mortais e mesmo alguns dos doentes assim tratados, chamavam de «corte de costelas», que mais não era que uma toracoplastia, com a finalidade de ao retirar algumas costelas, levar ao colapso do pulmão. O princípio terapêutico era semelhante ao do pneumotórax já que ambos os métodos pretendiam obter o colapso do pulmão, para que ele, assim colapsado e sem trabalhar, se pudesse curar com mais facilidade. Sobre o pneumotórax, a toracoplastia tinha a vantagem de ser definitiva, mas tinha, por outro lado, a grande desvantagem de ser altamente mutilante. Só em 1944, meados do século XX, é que Waksmann descobre a estreptomicina, a primeira droga ou medicamento que se mostra eficaz no combate à tuberculose e representa o ponto de viragem, o início do futuro desta antiga doença. Depois dela, aparecem o chamado P.AS. (que mais não é que o ácido paraaminosalicílico), a Isoniazida em 1951, em 1961 o Etambutol e, fundamentalmente, em 1966, a Rifampicina, há escassos 35 anos. A utilização destas drogas, sobretudo de uma forma associada, permitiram que a tuberculose diminuísse significativamente, pensando-se que tinha desaparecido, o que levou à desactivação de todas as outras formas adjuvantes de prognóstico e tratamento de que agora vos quero falar. Ninguém adivinhava nessa altura, que passadas escassas décadas, com o aparecimento da SIDA, a tuberculose voltaria à ribalta da discussão e actuação médica e que se esteja perante o triste facto de, apesar das drogas existentes, a tuberculose matar mais de 2 milhões de pessoas por ano, em pleno século XXI. Mas, é dos sanatórios que vos quero falar. Nos finais do século XIX começou a pensar-se que era importante para o tratamento da tuberculose ter em atenção o clima, entendendo-se por isso, a humidade do ar, as variações térmicas, os ventos dominantes, a altitude, a pressão do oxigénio, as temperaturas e a flora envolvente. Considerava-se um bom clima, um clima aconselhado para os doentes, aquele em que todas estas variáveis fossem favoráveis. Foi a partir desta ideia do aproveitamento de certos climas como complemento importante do tratamento, que surgiu a ideia de construir sanatórios nesses locais climatericamente privilegiados. A ideia surgiu primeiro na Alemanha e deve-se a Peter Dettweiller a criação da palavra sanatório, quando em 1876 fundou o mais famoso sanatório de todos os tempos, o conhecido Falkenstein. Passados alguns anos, os suiços fundam o também famoso sanatório de Davos e mais uns quantos. Mesmo aqueles que não se interessem especialmente pelos assuntos das doenças ou da saúde conhecerão já este sanatório de Davos, pois foi nele que se desenrolou toda a trama romanesca criada pelo prémio Nobel, Thomas Mann, no seu magnífico romance, Montanha Mágica. Os sanatórios não eram mais do que magníficos hotéis que simultaneamente eram hospitais, exclusivamente para doentes tuberculosos, embora recebessem também pessoas saudáveis ou outras que ali se instalavam profilaticamente. Em Portugal, o primeiro local escolhido por razões climatéricas, para o tratamento da tuberculose, foi a ilha da Madeira, para onde e ainda em 1852, se deslocou a princesa D. Amélia, filha de D. Pedro IV, que tal como a filha era tuberculoso e dessa doença viriam a morrer ambos. Isto levou a que a esposa de D. Pedro IV, Amélia de Beauharnais, tenha decidido ajudar à criação de um hospital para tuberculosos na cidade do Funchal, inaugurado em 1862. Seria fastidioso e com duvidoso interesse, falar-vos aqui dos vários hospitais criados para tratar a tuberculose, ou falar pormenorizadamente de todos os sanatórios que foram criados no século XX. Quero referir-me apenas aos mais importantes, não só sob o meu ponto de vista, mas de uma forma consensual., foram de facto os mais importantes pela qualidade dos serviços prestados, tamanho e conforto. Terei que falar em primeiro lugar daquele que cronologicamente foi o primeiro e que resultou da oferta do Forte do Outão por parte do rei D. Carlos, para a partir dele se ampliar e construir o sanatório marítimo do Outão. Estava-se na altura em que se tinha percebido que também para o tratamento da tuberculose óssea era importante o ar marítimo. Outro sanatório marítimo foi instalado em Carcavelos e mais tarde o de Sant’Anna em Parede. Por influência do prestigiado médico Sousa Martins foi construído na cidade da Guarda um grande sanatório. Por volta de 1922, foi construído no Caramulo, o Grande Hotel do Caramulo, que rapidamente, dada a avalanche de doentes que ali se instalavam, se passou a chamar Grande Hotel Sanatório e mais tarde Grande Sanatório e era o epicentro daquilo que se chamaria Estância Sanatorial do Caramulo, que chegou a englobar 18 pequenos sanatórios que começaram por ser pensões e pequenos hotéis, adaptados posteriormente a sanatórios. No norte construiu-se em Vila Praia de Âncora, o Sanatório Marítimo da Gelfa e outro mais pequeno na Foz do Douro, o Sanatório D. Manuel II, em Gaia. No centro construiu-se o grande Sanatório dos Covões, à custa de dinheiro da Colónia portuguesa no Brasil e ainda um grande sanatório nas Penhas da Saúde. Em Lisboa, o Sanatório Rainha D. Amélia, hoje Hospital Pulido Valente. O que caracterizava a acção terapêutica destes sanatórios, era o clima, o repouso, a boa alimentação, um corpo médico e de enfermagem especializado e permanente, organização e vigilância apertada, de tal modo que se dizia que «dos sanatórios não saía ninguém por curar. Ou saíam curados ou mortos»... No que ao clima respeita, vale a pena transcrever um pouco de um diálogo entre o director do sanatório de Davos e o doente Castorp, figura central da Montanha Mágica. Transcrevo: «Castorp, abra os ouvidos, porque, ao que parece, o senhor dispõe de circunvoluções cerebrais em número suficiente. Bem, o ar que temos aqui é bom contra a enfermidade. Não é isso que o senhor pensa? E com razão. Mas, ao mesmo tempo, este ar é bom para a enfermidade; compreende? Começa por acelerar o seu curso, revoluciona o corpo, fomenta a irrupção da doença latente, e tal irrupção é precisamente, com sua licença, a sua constipação... Não sei se já era propenso a febres, mas o senhor está febril desde o primeiro dia e não somente constipado, se quer ouvir a minha opinião... E daí vêm as suas bochechas alegremente rosadas. O senhor vai começar por meter-se na cama Castorp...» Vou recorrer uma vez mais à Montanha Mágica, para vos dar uma pálida ideia do que era a superalimentação nos sanatórios: « o menu do Berghof com os seus seis pratos, completos, uma refeição opulenta nos dias de semana, e nos domingos um festim de gala, de luxo e de espectáculo, preparado por um chefe de cozinha de formação europeia, na cozinha de um estabelecimento de luxo. A criada cuja função era atender os doentes que estavam de cama, trazia-o sob tampas niqueladas e em apetitosas caçarolas.». Isto no que respeitava à qualidade das refeições, mas tenho de dizer que se comia quase permanentemente, de tal modo que o valor calórico fornecido aos doentes no conjunto das refeições diárias oscilava entre as 3 e as 6.000 calorias... Vale a pena dizer-vos como os doentes passavam os seus dias. Levantavam-se às 07.30. e às 08.00 era o primeiro pequeno almoço. Das 09.00 às 10.30 cura de ar e repouso na galeria-solário. Às 10.30, segundo pequeno almoço. Das 11.00 às 13.00 cura higiénica na galeria. Às 13.00, almoço. Das 14.00 às 16.00, cura de ar e repouso, considerada a mais importante e em que era proibido falar. Às 16.00, lanche. Das 16.30 às 18.00, passeio pelos jardins. Das 18.00 às 19.00, repouso nos quartos. Às 19.00, jantar. Das 20.00 às 21.00, repouso. Às 21.00, chávena de leite com cognac e às 22.00, deitar e silêncio. Claro que nem em todos os sanatórios a alimentação era tão boa, já que se pode dizer que havia sanatórios de luxo e populares, estatais, para bolsas magras. Os sanatórios iam desde o hotel de 5 estrelas à pensão doméstica ou da morte lenta, como lhes chamavam. Pode já entender-se que havia uma certa distribuição social e económica dos doentes, mas a vida prolongada naqueles sanatórios, fossem eles quais fossem, permitia o estabelecimento de relações humanas muito particulares, a que nenhum dos internados podia ficar indiferente. A par da criação dos sanatórios a luta contra a tuberculose em Portugal foi exemplarmente organizada, tendo como base aquilo que se chamou ANT ou Assistência Nacional aos Tuberculosos e que foi criada em 1899, com estatutos promulgados em 1900, pelo rei D. Carlos, como obra de beneficência e de carácter particular, mas apoiada por um fundo especial de beneficência pública, com sede num magnífico edifício ao Cais do Sodré. Esta organização cria uma rede de Dispensários e de sanatórios. Em 1945, a ANT é extinta e em seu lugar é criado o IANT, Instituto de Assistência Nacional aos Tuberculosos, deixando assim de ser particular e passar a ser financiado pelo Orçamento do Estado. A tuberculose é uma doença que esteve sempre ligada a um certo misticismo, aos grandes amores e paixões, aos poetas, músicos e escritores. São inúmeras as personalidades que foram vitimadas por esta terrível doença ou por ela foram de algum modo atingidas, quer na ficção como a Dama das Camélias, por exemplo, quer na realidade. Quase toda a gente saberá que a Imperatriz Isabel, da Áustria, mais conhecida de todos por Sissi, acabou tuberculosa e veio para a nossa ilha da Madeira para se tratar. Todos saberão que o grande pianista e compositor Fréderic Chopin, morreu tuberculoso aos 35 anos, em Espanha. Poucos saberão contudo, os vexames por que passou em virtude de ser tuberculoso. Foi recebido em Maiorca como um rei, acarinhado por todos e festejado, até ao dia em que souberam que ele era tuberculoso. Logo, os mesmos que o adulavam se apressaram a escorraçá-lo, a queimar as roupas da casa que habitara e a obrigá-lo a partir. Nomes como Júlio Dinis, médico e escritor, António Feliciano de Castilho, Bulhão Pato, Raul Brandão, Miguel Torga, passaram pela Madeira, em tratamento. Destes, Júlio Dinis foi o que menos aproveitou pois morreu aos 33 anos, passados escassos meses da sua chegada à Madeira. José Régio, António Aleixo, Passos Coelho, também médico e escritor, passaram também pelos sanatórios. Passos Coelho, escreveu uma quadra que não quero deixar de vos ler, pelo que contém de informação sobre a doença prolongada que a tuberculose é e pela saturação que causa em muitos que depois de bem comportados e respeitadores das regras de tratamento se abandalham voluntariamente e caem na maior boémia, quase suicídio. Escreveu Passos Coelho: «Estou tão cansado/ De descansar deitado/ De peito para o ar/ Que penso até/ Ser enterrado de pé». Entre os estrangeiros vou citar apenas Schiller, Paganini, Lord Byron, Tolstoi, Tcheckov, Dostoievsky, Voltaire, Richelieu, Bernard Shaw, John dos Passos. Molière, terá morrido em palco, durante a representação do Malade Imaginaire, devido a uma hemoptise fulminante. Como disse atrás, por volta dos anos sessenta pensou-se que a tuberculose estava dominada e desactivaram-se os sanatórios que até agora já serviram para variadas coisas e assim acabou a magnífica estrutura do Instituto de Assistência Nacional aos Tuberculosos, que tão bons serviços prestou a este país. Neste momento, que eu saiba, apenas se mantém o Sanatório do Barro, em Torres Vedras. O crescimento exponencial de casos de SIDA, está a trazer a tuberculose de novo à ribalta e pelos piores motivos. Bom seria que os sanatórios pudessem vir a prestar novamente, os bons serviços que já prestaram, o que se afigura duvidoso dadas as condições fisicamente degradadas dos novos doentes tuberculosos.

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