Não se sabe ao certo a data em que apareceram os primeiros profissionais de farmácia em Portugal. Tem-se normalmente como certo que já no século XIII haveria boticários ou os seus directos antecessores, que não tratariam da preparação dos medicamentos, mas apenas da sua comercialização. Sabendo-se que os árabes possuíam farmácias desde o século VIII, é de prever e será quase certo poder pensar-se que tendo em conta a longa presença dos árabes na península ibérica, a nossa gente tivesse sido influenciada por eles e, entre as outras várias coisas, tenha com eles aprendido a arte da farmácia ou apenas a arte de vender medicamentos. A profissão mais frequente dos árabes na península ibérica era a dos attares ou attarin, de menor diferenciação técnica que os verdadeiros boticários e que terá levado àquilo que nós designamos como especieiros, os que lidam com especiarias. Sabe-se que estas já se comercializavam em Portugal no século XII e existem diplomas legais desse tempo que estabeleciam rigorosamente o preço delas. Nesse tempo as especiarias entravam Portugal por via marítima e terrestre, sendo a cidade de Lamego, um importante ponto comercial. Nas contas das Casas Reais, como na de D. Dinis, estão anotadas as quantidades e custos de várias especiarias para uso daquela Casa. Parece terem sido os judeus, os primeiros especieiros, segundo Fernão Lopes, que a eles se refere nas suas obras; e também parece querer mostrar isso o facto de haver um Livro dos «espeçeeiros» entre os cinco livros do «Serviço dos Judeus», referentes ao ano de 1376. Entre os especieiros temos que criar uma sub especialização, que poderemos chamar dos teriagueiros, por se dedicarem exclusivamente à fabricação e venda da teriaga que era o medicamento mais usado naquele tempo, feito à base de carne de víbora a que eram associados dezenas de outros produtos, normalmente à volta de cinquenta, mas que nalguns casos especiais chegava a atingir as centenas de princípios activos. A par destes especieiros, havia uma profissão mais respeitada que também tratava da preparação e da venda de medicamentos e que era a dos médicos. Parece que no século XIV, começaram a aparecer os boticários, uma vez que D. Afonso IV legisla sobre esta matéria, em 1338, mandando que sejam examinados pelos médicos do Rei, todos aqueles que exerçam as profissões de médico, cirurgião e boticário. Parece que a única, ou pelo menos, a maior diferença entre especieiro e boticário, assentava no facto de o boticário deixar de ser um vendedor ambulante e passar a ter um local fixo de venda de medicamentos, a botica, que significa exactamente depósito ou armazém. Parece que já nesse tempo terá havido uma mulher com esta profissão, Maria Nunes, que em Lamego a desempenhava e parece que muito bem. E nos séculos seguintes, continua a haver notícias de mulheres boticárias, o que é uma singularidade portuguesa, já que não era frequente ou não seria mesmo permitido o exercício dessa profissão por mulheres, nalguns países da Europa. Após a lei de D. Afonso IV e embora passasse a haver mais boticários, começou a prestar-se mais atenção e cautela à questão dos medicamentos e recorreu-se a boticários estrangeiros, tendo-se mandado vir de Ceuta, Mestre Ananias e mais alguns boticários. A vinda de Mestre Ananias, acabou por se transformar num marco histórico da farmácia em Portugal, uma vez que atendendo à sua categoria e diferenciação técnica, levou a que D. Afonso V, a 22 de Abril de 1449, tenha promulgado a chamada «Carta de Privilégios dos Boticários», concedendo através dela todos os privilégios, graças e isenções concedidas já aos Doutores Físicos, mais as honras de que gozavam os Cavaleiros, a pagar custas como as dos nobres e não como os peões, poderem usar armas ofensivas e defensivas e suas mulheres e filhos poderem usar sedas de ouro e prata como os Cavaleiros e ainda isenção do recrutamento militar. Embora represente e seja um marco histórico, esta Carta de Privilégios parece não ter tido efeitos para além de Mestre Ananias e seus colegas vindos de Ceuta, pois no século XVI, a profissão de boticário é considerado um ofício mecânico, vindo esse ofício registado no Livro de Registos dos Oficiais Mecânicos da cidade de Lisboa. O mesmo rei Afonso V que ditou a Carta de Privilégios dos Boticários, promulgou outra Carta Régia, em 1461, determinando a completa separação das profissões médica e farmacêutica. Daí em diante, quer os cirurgiões, quer mesmo os médicos, ficaram proibidos de preparar medicamentos para venda e os boticários ficaram proibidos de aconselhar qualquer medicamento ao doente. Cem anos depois, a lei foi mais longe nesta separação das duas profissões e estabelece a proibição de estabelecer sociedades entre médicos e boticários e, no caso do boticário ser parente do médico, fica proibido de aviar receitas desse médico. Em 1497, apareceu o «Regimento dos Boticários», determinando quais os livros que todos devem ter, assim como os pesos e as medidas. Os preços dos medicamentos foram rigorosamente tabelados. Estava o boticário obrigado a avisar o médico de que ia preparar o medicamento, para que este viesse assistir. Entrados no período das descobertas, tornou-se necessária a presença de boticários no oriente, logo que foi verificada a abundância de drogas e plantas medicinais naquelas paragens. Os boticários eram aqueles que, conjuntamente com os médicos, mais sabiam de drogas, quer na sua identificação, na sua manipulação e posterior uso. E quer boticários quer médicos, não abundavam, o que fez dos poucos que havia uma mais valia. Houve alguns que deixaram os seus nomes ligados para sempre, não só à História da Farmácia, como à História dos Descobrimentos. Refiro-me por exemplo, a Gaspar Pires, da armada de Afonso de Albuquerque, Simão Álvares e, muito especialmente, Tomé Pires. Num programa que anteriormente fiz sobre os descobrimentos referi-me ao facto de alguns dos médicos desse tempo acumularem as suas funções de médicos com as de astrónomos e matemáticos. Pois, também os boticários tiveram que acumular as suas funções com outras, sobretudo os 3 que referi, que, por decisão dos Governadores, foram encarregados de missões diplomáticas de alta responsabilidade. Tomé Pires foi o boticário que mais se destacou quer como boticário quer como embaixador. Foi ele o primeiro embaixador enviado à China, numa viagem longa, duradoura e sem regresso, uma vez que todos os portugueses que a integravam foram mortos, embora se diga que Tomé Pires e, só ele, terá morrido de doença ou, como alguns sustentam, terá vivido muitos anos, mas sem autorização de abandonar a China. Enquanto se encontrava na China escreveu uma carta ao rei D. Manuel em que descrevia várias drogas que ali viu pela primeira vez e foi o autor da conhecida e famosa Suma Oriental, que é considerada a mais antiga e pormenorizada descrição portuguesa do Oriente e particularmente da Malásia. Também Simão Álvares escreveu sobre as drogas orientais na sua Informação sobre o nascimento de todas as drogas que vão para o Reino. Nesta obra são descritas mais drogas do que as que Tomé Pires descrevera a D. Manuel e de uma forma mais pormenorizada. Tem que se fazer referência numa história deste tipo ao facto destas descrições não terem sido obra exclusiva dos boticários, pois muitos missionários e militares o fizeram também e, muito naturalmente, os médicos, especialmente Garcia de Orta, Cristóvão da Costa, Curvo Semedo, Fonseca Henriques, José Rodrigues de Abreu e Jacob de Castro Sarmento. Só nas duas últimas décadas do século XVIII foi iniciado o estudo sistemático das plantas medicinais de África e do Brasil, sob a orientação do professor catedrático de botânica da Universidade de Coimbra. Até aí, a medicina que se praticava em Portugal continuava muito agarrada à sangria e aos clisteres e muito menos às drogas, excluída a teriaga que era de uso bastante corrente. Isto era de tal modo assim que o povo com a sua habitual sabedoria e espírito de observação, rapidamente adoptou uma sentença que dizia que «em Lisboa não há sangria má, nem purga boa»... Mas se era este o aspecto dominante da prática médica, há que dizer que no que à Farmácia respeitava se deram modificações quase radicais nos séculos XVII e XVIII. Se até aí, a farmácia era fundamentalmente dita galénica, isto é, usava substâncias de origem vegetal e animal, com o aparecimento de Paracelso e das suas teorias e da iatroquímica, começaram a desenvolver-se técnicas para a obtenção de princípios activos puros, levando ao aparecimento da chamada Farmácia Química, herdeira directa, podemos dizê-lo, da alquimia, metalurgia e contrastaria. Os sais de antimónio e de mercúrio foram os primeiros a ser usados. Zacuto Lusitano já se referia ao antimónio no princípio do século XVII. Mas, a utilização dos medicamentos químicos só começou a ser aceite pelos médicos, depois de Curvo Semedo os defender na sua Polianteia Medicinal e também depois de Francisco Fonseca Henriques, médico de D. João V, o ter feito. Apesar dos médicos começarem a aceitar os medicamentos químicos, havia também alguma resistência por parte dos boticários, pelo que era rara a botica devidamente capaz para fazer a manipulação química, por falta de equipamento, de conhecimentos e de fé no próprio medicamento. Sucedia que algumas boticas compravam as substâncias já devidamente preparadas e tratadas quimicamente e depois limitavam-se a comercializá-los. Isto levou ao desenvolvimento do negócio dos «droguistas» que preparavam os produtos e depois os vendiam aos boticários. Alguns boticários mais amigos do progresso tinham já equipamento próprio e para além de prepararem os produtos de que necessitavam para as suas boticas, preparavam maiores quantidades para as venderem aos outros boticários. Há que não esquecer que os boticários eram oriundos de aprendizes incultos ou de nível cultural baixo, continuavam a ser considerados oficiais mecânicos, meros praticantes de farmácia e esta era considerada arte subalterna da medicina. Ainda no tempo do Marquês de Pombal, os Estatutos da Faculdade de Medicina de Coimbra, por ele promulgados, reservavam a ciência farmacêutica aos médicos que eram obrigados a estudar Teoria e Prática da Arte Farmacêutica para «cabalmente entenderem o efeito dos remédios e descobrir, corrigir e emendar os erros e as fraudes dos boticários»...Ao contrário da farmácia que podemos chamar de laica, a farmácia dos frades ou conventual era bastante mais desenvolvida, acompanhando sempre a evolução e o progresso. De tal modo que havia medicamentos que só eles faziam e de que tinham a fórmula secreta. Havia produtos que eram conhecidos de toda a gente como a «água celeste», as «pedras cordiais», a «teriaga brasílica», estas duas últimas produzidas pelos jesuítas, a «água de Inglaterra», de André Lopes de Castro. A farmácia conventual era de tal modo desenvolvida que o médico Ribeiro Sanches, de todos conhecido, dizia que era ela a culpada do estado de pobreza em que se encontrava a farmácia laica. Surgiram também nestes dois séculos os chamados remédios de segredo e o consequente marketing publicitário, aparecendo a publicidade paga nas gazetas a esses medicamentos. O curioso era que quem preparava estes medicamentos de segredo ou secretos não eram só os boticários, sendo estes apenas 10% deles. A maioria eram os médicos com 30%, os cirurgiões com 20% e os restantes pertenciam às mais variadas profissões como religiosos, militares, ferreiros, etc...Entre os médicos fabricantes de medicamentos de segredo, merecem destaque Curvo Semedo e Jacob de Castro Sarmento. Foi sobretudo no século XVIII que apareceram grande número de obras escritas sobre matéria farmacêutica e as chamadas Farmacopeias, mas foi só a partir deste século e até ao século XX que se deram os passos necessários ao verdadeiro ensino da farmácia e ao nascimento da profissão de farmacêutico, até a criação das Faculdades de Farmácia em pé de igualdade com as restantes Faculdades da Universidade portuguesa. No princípio do século XIX tinha sido publicado o Regimento dos médicos e boticários cristãos velhos, que estabelecia bolsas para os praticantes estudarem e aprenderem numa botica, sendo o dinheiro da bolsa entregue ao boticário que ensinava. O praticante trabalhava gratuitamente, pelo menos durante quatro anos, pois como o praticante tinha de ser proposto a exame pelo boticário este podia explorar o praticante e nunca o propor. Por isso, antes de iniciar a prática era estabelecido um contracto entre os pais do praticante e o boticário em que ficava estabelecido o tempo máximo de aprendizagem. Alguns mestres, além de terem o trabalho gratuito do praticante ainda cobravam uma propina aos pais. O mestre era obrigado a fornecer alojamento e comida que, normalmente, era na própria botica. O regime de trabalho era de sete dias por semana e só haveria um pequeno tempo de descanso se o mestre assim o entendesse. E não havia sindicatos...E em cada dia que trabalhava devia o praticante levantar-se antes de «sair» o sol, limpar cuidadosamente o pó e todas as sujidades que houver na botica e nos seus frascos, após o que lavará a cara e as mãos, após o que porá azeite nas candeias e verificará as torcidas para que, se algum dia for pela tarde passear (o que não fará sem licença do mestre) não haja faltas ou esquecimentos. As condições oferecidas aos praticantes eram miseráveis e esclavagistas, como bem o afirma o conhecido escritor Fialho de Almeida, que poucos saberão que foi médico e menos ainda que, antes de o ser, tinha sido praticante de boticário. Entre outros mimos escreveu «durante estes sete anos de emplastros e de pílulas, ninguém pode imaginar os tormentos que eu passei. Davam-me três horas ao domingo para oxigenar os pulmões cansados de respirar fedentinas de drogas e ervas podres; a minha alimentação era uma burundanga que sobrava do jantar da família do patrão (....) Dormia num cacifo de seis palmos de largo por vinte de comprido e dez de altura, numa enxerga metida numa espécie de gaveta...». Como daqui se pode ver as condições eram dramáticas. A primeira Farmacopeia oficial foi publicada em 1794, da autoria de Francisco Tavares, médico da rainha e foi determinado que era obrigatória a sua existência em todas as boticas para a instrução dos praticantes e os médicos ficavam obrigados a receitar de acordo com os medicamentos ali referidos.Todos que ali não constassem teriam que escrever a fórmula completa na receita. Em 1801 foi criado em Lisboa um estabelecimento que ficou instalado no Laboratório Químico da Casa da Moeda, para o ensino da Docimásia e da Farmácia. Mas logo em 1804, esta cadeira de farmácia passou a ser integrada na Faculdade de Filosofia da Universidade de Coimbra. Em 1823, muitos boticários assistiam ao Curso de Física e Química. Contudo o ensino superior farmacêutico só começou em 1836, com a criação das Escolas de Farmácia anexas à Faculdade de Medicina de Coimbra e às Escolas Médico-Cirúrgicas de Lisboa e Porto. Como após a sua criação se manteve a antiga via do praticante de farmácia, passou então a haver farmacêuticos de 2ª classe que, curiosamente, tinham direitos equivalentes àqueles que tinham os que saíam das Escolas de Farmácia, onde o curso durava então dois anos. A distinção entre farmacêuticos de 1ª e 2ª classe só acabou em 1902, quando as Cortes aprovaram uma Reforma que obrigava todos à frequência do curso de farmácia. Este continuava a ser de dois anos, mas com quatro cadeiras teóricas e práticas. Em 1911, o Curso passou a ser de quatro anos mas continuou anexo à Faculdade de Medicina, como ainda hoje se pode ver nalgumas cartas de curso que ainda existem e que ostentam ainda as fitas amarelas da medicina. Só em 1918 apareceram as Escolas Superiores de Farmácia que passaram a ser independentes e autónomas. Mas, logo em 1921, a designação de Escola Superior de Farmácia passou a Faculdade de Farmácia, com os graus de licenciatura e doutor. Mas, passados alguns anos tudo dá um passo à retaguarda e em Lisboa e Coimbra passa a haver as antigas Escolas, mantendo-se a Faculdade de Farmácia apenas no Porto, a única que podia conceder licenciatura. E foi apenas em 1968 que esta injusta situação foi corrigida de vez, voltando a haver as três Faculdades que continuam a existir. (Algumas imagens foram retiradas do livro A Farmacia em Portugal, de Jose Pedro Sousa Dias)
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