Se eu perguntar ao comum dos mortais, ou até a alguns médicos, tendo o cuidado de excluir os anestesistas, está bom de ver, se a anestesia é uma aquisição recente dentro da História da Medicina, penso ser garantido, com algumas excepções, as tais que confirmam a regra, que a anestesia é uma aquisição médica recente. E aqui, como em todas as coisas, nem sempre as palavras traduzem a verdade inteira, mas apenas uma parte dela. É um facto que a anestesia, tal como hoje a entendemos e praticamos, é uma aquisição recente, não sendo exagero dizer-se recentíssima, pois só há escassos 50 e poucos anos, se formaram, entre nós, os primeiros anestesistas e ao serem os pioneiros que foram, nem sonhavam, por um instante que fosse, o que as décadas seguintes lhes iam reservar de surpresas continuadas e de espantosos avanços técnicos. Em 1950, apenas cerca de vinte médicos se dedicavam à anestesia, em exclusividade, e a especialidade de anestesia ou anestesiologia, como agora se diz, só foi reconhecida pela Ordem dos Médicos em 1951. E a Sociedade Portuguesa de Anestesia só foi criada em 1955. Por isso, se nos ficássemos por aqui, diríamos todos que a anestesia é uma recentíssima especialidade médica. Mas não sendo por aqui que eu quero ficar, pois hoje propus-me contar-vos a história da anestesia, tenho que vos deixar de queixo caído quando vos disser que esta especialidade que acabamos de considerar recentíssima, é, ao contrário do que pensávamos, a mais antiga especialidade de que há memória... Não se assustem, porque eu descodifico já o que disse. Era apenas uma graça, talvez de mau gosto, mas que não resisti a fazer. Lembrei-me que no Velho Testamento, no Génesis, II, 21, se pode ler que «Mandou, pois, o Senhor Deus um profundo sono a Adão; e, enquanto ele estava dormindo, tirou uma das suas costelas e pôs carne no lugar dela. E, da costela, que tinha tirado de Adão, formou o Senhor Deus uma mulher...». O que foi isto senão uma ribectomia, sob anestesia?. Deus mandou um profundo sono a Adão. O que sucede quando somos anestesiados? Diz nalgum outro lado que Adão teve dor? Desculpem a graça, mas pareceu-me que era uma boa forma de entrarmos na verdadeira história da anestesia. Não farei referência, propositadamente, ao uso muito antigo de poções soporíferas, à base de raiz de mandrágora e de vinho e muitos outros produtos, porque desse uso nada veio beneficiar o que é a anestesia hoje. Pensei ser melhor contar-vos apenas a história de todas as descobertas ou factos que de uma forma directa ou indirecta, levaram à anestesia actual. O primeiro desses factos e referências que existem, situa-se em 1275, e na nossa vizinha Espanha, quando Raymondo Zulhine, descreve o éter, o «sweet vitriol», mas ainda não fala nas suas propriedades anestésicas., o que vai demorar quase trezentos anos a suceder, pela mão e boca de Paracelsus, que em 1540, descobre os efeitos soporíferos do éter e descreve o seu uso nas doenças dolorosas. Passados 24 anos, é a vez de esse nome ímpar da História da Medicina, pai incontestado da Cirurgia e que dava pelo nome de Ambroise Paré, que passou de barbeiro a sangrador, depois a cirurgião e acabou cirurgião de três reis, ter descrito a utilização pela primeira vez da anestesia local, obtida pela compressão de nervos e vasos sanguíneos, método que em 1600, foi usado em Itália por Valverdi. Espanta contudo que os continuadores de Paré não adoptassem tal método o que leva a supor que, embora Paré fosse homem de uma só palavra e de grande verticalidade, ele tivesse exagerado um pouco os bons resultados obtidos por aquele método. Apenas para ficarem com uma ideia da integridade de Ambroise Paré, não resisto a contar-vos uma história muito conhecida, passada entre ele e o rei Carlos IX, de França. Este rei quando nomeou Paré seu cirurgião chefe, lembrou-lhe a acrescida responsabilidade que tinha de o tratar especialmente bem. Paré ouviu e respondeu ao rei que isso não poderia fazer, pela simples razão de tratar todos os seus doentes como se fossem reis... Só dois séculos depois e em dois países diferentes é descoberto o oxigénio e o seu interesse médico e um ano depois, um dos descobridores do oxigénio, o inglês Joseph Priestley, descobre o protóxido de azoto, sem tirar grandes conclusões sobre o seu interesse muito longe de sonhar que quer um quer outro viriam a mostrar-se fundamentais no desenvolvimento da anestesia. Quem vem a verificar o papel analgésico do protóxido de azoto foi Sir Humphrey Davy, 26 anos depois da sua descoberta, após ter feito experiências em si próprio e em vários voluntários, concluindo que aquele gás lhe parecia abrir o caminho ao domínio da dor e à possibilidade de a cirurgia se desenvolver. Dizia que quando o inalava sentia ao mesmo tempo a força de Hércules, a energia de Alexandre, o Grande e as visões de Joana d’Arc, antes de adormecer. Contudo, tiveram que passar mais anos até que isso se verificasse pela primeira vez, exactamente em 1798. Na Prússia, em 1806, Friedrich Lesturner, consegue extrair morfina, do ópio. Em 1807, o cirurgião militar Larrey, que viveu alguns anos em Portugal durante as invasões francesas, verificou que os soldados não tinham dor ou a tinham em muito menor grau, quando as amputações eram feitas com temperaturas abaixo de zero. Há quem diga que esta constatação de Larrey, já tinha sido verificada dois séculos antes por um italiano, mas não há garantia de que assim tivesse sido. Em 1824, Hichman, diz ter realizado operações cirúrgicas sem dor, usando o CO2, o anidrido carbónico. Sabe-se que Larrey, resolveu usar o CO2 numa intervenção cirúrgica ao rei Carlos X, mas não teria obtido sucesso. A preocupação dos cientistas dessa época, como das que se lhe seguiram, centraram-se muito na investigação dos fenómenos da dor. Só isso explicará a coincidência de o oxigénio ter sido descoberto por dois cientistas diferentes, em diferentes países, mas ao mesmo tempo, ou o facto de em 1831, em três países diferentes, tenha sido descoberto o clorofórmio e as suas marcadas propriedades anestésicas. É a primeira vez que aparece como descobridor um cientista americano. Por essa altura, um inglês consegue com sucesso, fazer uma anestesia por hipnose. Quase 600 anos depois do espanhol Raymondo Zulhine, ter descoberto o éter, aparece um americano a usá-lo para anestesiar uma doente a quem o dentista ia tirar um dente. A extracção foi um sucesso, mas um prestigiado psiquiatra resolve dizer que a doente era uma histérica, desacreditando assim o uso do éter, embora nesse mesmo ano tivesse sido usado outra vez nos EUA, para extrair um pequeno tumor do pescoço. Num fim de tarde do dia 10 de Dezembro de 1844, numa pequena cidade do estado de Connecticut, Hartford, no Union Hall da cidade, realizou-se um grande espectáculo para observação dos efeitos obtidos pela inalação do gás protóxido de azoto, gás hilariante ou gás do riso. E no cartaz que promovia esta grande demonstração dizia-se que a organização dispunha de 40 galões de gás para ser usado por todos os que o quisessem fazer e quisessem com o seu auxílio, rir, cantar, falar ou lutar, de acordo com o carácter de cada um. Avisava-se no cartaz que os participantes «manteriam sempre um estado de consciência bastante para dizerem que não queriam inalar mais e que, por outro lado, estariam protegidas de actos menos dignos de terceiros, por oito homens fortes que ocuparão os lugares da frente, apenas para vos proteger». E anunciava ainda que o Professor Colton aproveitava esta demonstração como uma experiência científica, pelo que se cobrava uma entrada de 25 cêntimos.... Já anteriormente, pelas mãos de Humphry Davy, tinham sido feitos cartazes semelhantes, mas para plateias mais limitadas, como o que se mostra. Nesse mesmo ano de 1844, é usado pela primeira vez o protóxido de azoto, também para a extracção de um dente, pelo dentista Horace Wells e com o protóxido administrado pelo Dr. Colton. Desta vez o doente é um homem, não fosse aparecer outro psiquiatra a invocar a histeria. A extracção foi um êxito. O que levou o mesmo médico a voltar a usar o protóxido de azoto no mesmo doente, para a extracção de outro dente, mas dessa vez não correu tão bem e ainda por cima com a assistência de um afamado médico, de apelido Warren, que não evitou chamar charlatão ao médico, porque o dente se tinha partido. A ofensa foi tão violentamente sentida, que o Dr. Colton, acusado de charlatão, não aguentou a tensão psicológica e, chegado a sua casa, suicidou-se. Foi a primeira vítima da anestesia! Em 1846, Morton resolve usar novamente o éter para a extracção de um pequeno tumor do pescoço e curiosamente com o mesmo Dr. Warren na assistência, que, desta vez, não fez qualquer acusação. Há uma história ligada a esta, que permite alguma especulação. Sucedeu que não havendo naquele momento nenhum doente disponível para ser operado e não tendo aparecido qualquer voluntário, foi determinada e escolhida a vítima, cuja escolha caiu no motorista do hospital, que, por azar, tinha um tumor como o que era pretendido. Não diz a história se o motorista era negro, mas é de presumir que sim. E é neste mesmo ano de 1846, que aparece a palavra anestesia, introduzida por Oliver Holmes. Dissemos que o clorofórmio foi descoberto por três cientistas ao mesmo tempo, pois voltaram a ser dois cientistas quem simultaneamente defendem as propriedades anestésica do clorofórmio. O ano de 1847 é um ano referência para os anestesistas, sobretudo para os ingleses, pois que foi nesse ano que John Snow, se regista e é aceite como especialista em anestesia. Desconhecem-se as técnicas que usava, mas sem querer fazer humor forçado, não evito pensar que deveria usar a técnica do frio, não se chamasse ele snow... Nesse mesmo ano, 1847, Sir James Simpson usou o clorofórmio em operações de grande cirurgia e em partos. Também John Snow usou o clorofórmio em dois partos da rainha Vitória, uma técnica que viria a designar-se de técnica «à la reine». Uma das crianças era menina e esteve para se chamar Anestesia, como muitas inglesas se chamavam na altura, em homenagem ao parto indolor das mães. No entanto, a proposta foi derrotada na Corte Britânica e a princesa acabou por receber o nome de Beatrice. Também neste ano de 1847, aparece o primeiro português ligado à história da anestesia. Trata-se de Francisco Luiz Gomes, que nessa ano defendeu tese de doutoramento, em Montpellier, subordinada ao tema «Anestesia geral pelo éter». E em 1848, no ano seguinte portanto, aparecem as primeiras referências a anestesias feitas no Hospital Militar da Estrela, usando o clorofórmio. Em 1871, aparece o primeiro aparelho de interesse em auxílio da anestesia. Refiro-me ao «Iron Cilinder». Em 1875, Claude Bernard, usou pela primeira vez a morfina, setenta anos depois da sua descoberta, como pré medicação, conceito este também novo. Em 1885, realizam-se nos EUA, a primeira anestesia subaracnoideia, conhecida como raquianestesia e já com sucesso. Passados 10 anos são inventados na Alemanha, os tubos endotraqueais, o que entusiasma os cirurgiões a usarem raquianestesias, cuja técnica foi aperfeiçoada, sobretudo pelo francês Tuffier. Já no século XX, foi usada pela primeira vez a cocaína, por via epidural e caudal. Começa a ser usada a procaína, para anestesia intravenosa regional e em 1911 aparece o primeiro aparelho de Heidbrinck que é muito aperfeiçoado em 1924 e se mantém muitos anos em uso, usando o nome do seu inventor. Em 1920, Magill, desenvolve a chamada anestesia endotraqueal e inventa a ainda hoje usada pinça de Magill. Apareceu o tubo de Guedell para fixação da língua e a máscara de Ombrédanne. Nos EUA, descobre-se a vantagem de usar a soda para a absorção do CO2 , no mesmo ano em que é inventado um novo aparelho de anestesia designado por modelo Seattle. Em 1927, na Alemanha usa-se o barbitúrico, Pernoctan.. Sword, nos EUA, passa usar, desde 1928, filtros e anestesia em circuito fechado. O ciclopropano foi usado pela primeira vez em 1930, e em 1934 usou-se pela primeira vez, o pentotal. Aparece o vaporizador de Goldman. O ano de 1935 foi um ano glorioso para a anestesia. Foi introduzida a intubação traqueal, com pressão positiva directa e o uso dos curarizantes. E foi o ano em que Inglaterra reconhece finalmente esta especialidade médica, embora John Snow tivesse feito a sua inscrição em 1847. É possível ver-se que o desenvolvimento da anestesia foi feito à custa de várias descobertas, que mesmo que inicialmente ignoradas e pouco respeitadas, vieram posteriormente a mostrar-se interessantes. Mas, o grande progresso, deu-se com o aparecimento dos aparelhos, com a intubação endotraqueal, com o uso controlado das drogas, com a anestesia feita ciência médica exigente. Hoje, podemos dizer que depois desta longa e atribulada história, a anestesia é uma especialidade exigente e segura.
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