A História tem coisas difíceis de explicar. Não me refiro a tudo aquilo que não se consegue explicar por haver montes de dúvidas sobre os factos em estudo, mas sim sobre acontecimentos históricos completamente esquecidos, de que ninguém fala, que a maior parte dos eruditos parece desconhecer ou procede como se assim fosse, e todo este esquecimento sem que se vislumbre, adivinhe ou intua a razão ou razões que levam a isso. Todo este intróito, para tentar dizer-vos, logo de entrada, que a história que hoje decidi contar-vos, vai tratar de um desses acontecimentos históricos de que, não se sabe por que razão, ninguém ou quase ninguém fala, ninguém ou quase ninguém conhece. Vou falar-vos de uma forma muito aligeirada e resumida, exactamente porque são muito poucas as fontes que sobre isso se podem consultar, sobre o chamado Hospital Real da Luz ou Hospital Real dos Prazeres, como também foi conhecido. Neste momento, já a grande maioria dos telespectadores se terá perguntado que raio de hospital foi esse de que nunca ouviram falar. Mas mais espantados ficarão quando eu lhes disser que se trata de um hospital construído de raiz, com essa única finalidade e que o edifício que o albergou ainda hoje existe e em magnífico estado de conservação. Não tenho dúvidas que o espanto será quase geral. Para que isto não pareça um romance policial, e quem me dera saber escrevê-los, vou entrar rapidamente no assunto da minha história de hoje e começar assim a esclarecer o mistério. O Hospital de Nossa Senhora da Luz ou de Nossa Senhora dos Prazeres, padroeira do Hospital da Luz, foi mandado construir pela Infanta D. Maria, filha do rei D. Manuel e de sua segunda mulher, D. Leonor, no lugar da Luz, em terreno próximo do já existente convento e igreja da Luz, dos frades da Ordem de Cristo. O local teria sido escolhido pela grande afluência de romeiros e enfermos devotos daquela santa e por se tratar de uma região muito próxima da capital e considerada com bons ares e salubre. Entre os seus professores, distinguiram-se a sua aia Luísa Sigeia, doutíssima senhora, natural de Toledo, que lhe ensinou letras humanas e a língua latina; sua irmã Ângela Sigeia com quem aprendeu a tocar alguns instrumentos, com especialidade os mais usados no culto divino como a harpa e o órgão, e Frei João Soares de Urró, da ordem dos eremitas de Santo Agostinho, depois bispo de Coimbra, que a iniciou nas divinas letras. No seu paço particular criou a infanta D. Maria uma verdadeira universidade de senhoras ilustres em todo o género de ciências e artes, de que foi especial protectora, pois não só se encontrava quem se desse à lição dos livros, e tocasse destramente diferentes instrumentos, mas quem com o pincel e com a agulha procurasse nos primores da pintura e lavor virtuosa emulação, e seguisse todos os outros louváveis exercícios, aos quais juntava com tal reverência e edificação a prática dos actos de piedade em todo o género de virtudes, pela direcção de Frei Francisco Foreiro, seu confessor, da ordem de S. Domingos, que parecia mais um mosteiro de religiosas reformado, do que paço real. No seu testamento de 1577, a Infanta D. Maria diz que «o hospital se edifique com hos rendimentos de dous contos de juro, de que ho doto». Mais dizia que deveria ser feito um estatuto ou regimento, semelhante ao que sua tia D. Leonor tinha feito para o Hospital Termal de Nossa Senhora do Pópulo, nas Caldas da Rainha e que esse estatuto ou regimento seria firmado por sua mão e no seu impedimento pelo seu confessor, o Padre Francisco Foreiro. A Infanta faleceu antes de o poder assinar e este acabou por ser assinado pelo Padre Francisco Foreiro em 3 de Abril de 1618 tendo o hospital sido inaugurado a 23 de Abril de 1618. Também neste testamento a Infanta dizia que queria que as obras começassem rapidamente e que, se a renda não chegasse, logo se aumentaria. E, desta forma nasceu um hospital lindíssimo destinado apenas a 63 camas, destinadas apenas a doentes que não tivessem doenças incuráveis ou contagiosas, com um quadro de pessoal correspondente à sua dimensão e que contava com um médico, um cirurgião sangrador, enfermeiros, outro pessoal hospitalar e para o tratamento da alma, um capelão. O edifício foi construído com grandeza, com planta em cruz latina, com rés do chão e andar nobre, com um claustro na parte central e no centro uma grande cisterna, com capacidade superior a 500 metros cúbicos. No pavimento térreo ficavam a cozinha, a botica e outras dependências. As enfermarias situavam-se no andar superior, assim como um quarto separado, destinado a fidalgos pobres ou pessoas de qualidade que ali se fossem tratar e que, desse modo, ficavam separadas do resto dos doentes. Curiosamente, encontrei uma referência a que um dos tais fidalgos ou pessoas de qualidade que nesse quarto teriam estado internados, tinha sido o Dr. André de Morais Sarmento, Juiz dos Pleitos da Coroa e da Fazenda Real, transmontano como eu e natural de uma vila próxima da cidade em que nasci e com muitos descendentes, meus amigos, que por ali e outras partes continuam a levantar bem alto o nome de honrada família. O Dr. Morais Sarmento terá feito o seu testamento em 14 de Novembro de 1690, neste Hospital, como consta nas Memórias Arqueológicas e Históricas do Distrito de Bragança. O edifício do hospital era imponente e digno, mas sóbrio e existem dúvidas sobre quem teria sido o arquitecto. Uns apontam o nome de Jerónimo de Ruão, que parece ter estado ligado apenas à fase inicial da obra, tendo sido responsável posteriormente, Baltazar Álvares, arquitecto de Sua Majestade e dos Mestrados das Ordens Militares, Cavaleiro do Hábito de Cristo e que pelo Livro de Contas e despesas do século XVII, se sabe ter sido em 1610, Mestre das Obras do Hospital Real da Luz. E também o tipo de arquitectura aponta para que tenha sido Baltazar Álvares o arquitecto do Hospital. A capela de nave única, muito do seu gosto, é mais um facto que aponta nesse sentido. De cada lado do altar desta capela, abrem-se duas largas portas que comunicavam com as enfermarias, permitindo desse modo que os doentes assistissem e participassem no culto. Independentemente da vontade do arquitecto, a Infanta D. Maria tinha mandado escrever no seu testamento esta condição da comunicabilidade das enfermarias e da capela, à semelhança do que também se passava no Hospital Real de Todos os Santos. No altar mor do Mosteiro há várias figuras simbólicas pouco usuais e deslocadas em relação ao tradicional nos altares mores. Nele se podem ver representações da Astronomia e da Medicina Também no Mosteiro dos Jerónimos aparecem algumas destas imagens, o que provavelmente se ficou a dever a Jerónimo de Ruão que trabalhou nos dois Mosteiros. No livro 2726 da Biblioteca do Exército existe o testamento da Infanta D Maria e, junto, o Regimento deste Hospital Real Militar da Luz ou dos Prazeres como também era conhecido. Gustavo Matos Sequeira no seu livro «O Carmo e a Trindade», diz que os Padres da Ordem de Cristo destelharam o Hospital da Luz «a título de ficar mais leve em atenção a outro terramoto» para venderem as telhas a preços exagerados, pela falta que delas havia e porque a procura era grande. Também no Arquivo Histórico Militar existem os 4º, 5º, e 8º Livros de Despesas deste Hospital, dos anos de Julho de 1796 a Fevereiro de 1797, de Março de 1797 a Novembro de 1798 e de Fevereiro de 1801 a Fevereiro de 1802. Existe o 1º Livro de Receitas, que as refere de 1 de Julho de 1792 a 10 de Setembro de 1802. De 26 de Abril de 1790 a 18 de Novembro de 1791, foram tratados pelo Médico da Enfermaria Militar estabelecida no Hospital de Nossa Senhora dos Prazeres, no sítio da Luz, António da Costa Pinheiro, 147 enfermos e mais 12 do Campo da Porcalhota. Tiveram alta 111, morreram 22 e ficaram 26. Por isso, pretende ordenado competente à natureza do seu exercício. Como se vê pela pretensão deste Médico, também era conhecida por Enfermaria Militar, embora documentos oficiais lhe chamem Hospital Real Militar da Luz. Este médico não só conseguiu o pagamento dos serviços, como passou a habitar numas «casas» daquele Hospital, por causa das quais fez mais dois requerimentos solicitando obras e reparações. Mas o Procurador Fiscal entendeu que não tinha direito às obras e até recebia um soldo avultado em relação ao que fazia, embora estivesse encarregado das «visitas da manhã e da tarde». Como Cirurgião, ali trabalhava, em 1791, Manoel da Silva Paulino de Figueiredo, por 120 réis a visita, o que perfazia 87$000 por ano, sem obrigação de sangrar e deitar bixas, o que se pagava à parte, e que por Alvará de 20 de Março de 1792 passou a receber 100$000 por ano, mas com a obrigação das visitas da manhã e de tarde e tudo o que fôsse preciso aos doentes de Cirurgia, sangrar, tirar dentes, deitar bixas e vesicatórios, sempre que lhe fosse determinado. Na Resolução Régia de 6 de Julho de 1792, «a respeito de ser indispensável haver no Hospital Real Militar da Luz, um Capelão que tenha a seu cargo toda a assistência espiritual dos enfermos que ali vão convalescer», Sua Majestade resolveu «em consulta da Junta dos Três Estados, participada em Aviso de 23 de Fevereiro de 1790, que os Militares enfermos de queixas do Peito, que se achassem no Hospital Real Militar de S. João de Deus desta cidade, fossem transferidos para o sítio da Luz». Em 6 de Novembro de 1793, tem-se notícia de um conflito estabelecido entre um médico do Hospital e o Deputado para os Hospitais, D. José de Noronha, que tendo proibido o médico de receber honorários pelos atestados que passava e sendo desobedecido, levou o Deputado a representar à Junta dos Três Estados. O médico argumentava que estava dentro do Direito Divino e Humano e «assim todos procediam e o salário que tinha era para tratar os doentes, os atestados tiravam-lhe tempo para a clínica exterior, justo era que lhos pagassem». A Junta entendeu que tendo o médico Alvará Régio devia este caso ser representado a El-Rei e entretanto continuar a receber os atestados, que, aliás, era o mesmo que o Escrivão fazia para os óbitos. Em 26 de Dezembro de 1809, o Cirurgião-Mór participa a D. Miguel Pereira Forjaz que o Hospital Real Militar da Luz não merece esse nome, pois «não serve actualmente para doentes mas para acomodação de tropas». Na relação das pessoas empregadas no Hospital Real de Nossa Senhora dos Prazeres do sítio da Luz, de 1813, constam um médico, um cirurgião sangrador, um boticário, um infermeiro (sic), uma cozinheira, um mozo (sic) de porta e uma lavadeira. O que é curioso nesta relação é verificar que quer o médico, quer o cirurgião, recebiam menos que o enfermeiro, a cozinheira e o mozo da porta e apenas mais do que a lavadeira. Provavelmente porque tinham um horário de part time. O boticário não recebia qualquer vencimento, mas apenas os lucros da venda dos produtos da sua botica. Mais curiosas ainda são as anotações ou comentários feitos pelo Provedor Domingos Monteiro de Albuquerque Amaral e Francisco Furtado de Mendonça, sobre os préstimos e merecimentos de cada um destes empregados. Do médico dizia que apesar de não ser de primeira qualidade, também não era dos piores, de bons costumes, mas pouco tratável. Do cirurgião, dizia que era «mao omem», dado ao vinho e mao cirurgião. O boticário era um bom boticário e bom omem. Todos eles habitavam em dependências cedidas pelo hospital, mas simples quartos, nenhum deles tinha casa. E deve ter sido esta a última relação dos empregados do Hospital Real de Nossa Senhora dos Prazeres, no sítio da Luz, pois em 1814, no ano seguinte, portanto, já se publicava a planta topográfica do chamado Colégio Militar que, entretanto, ocupara as instalações do antigo hospital que se manteve em funcionamento de 1618 a 1814.
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