quarta-feira, agosto 30, 2006

e, se eu vos contasse? – 34º programa – a história da medicina em pintura

O programa de hoje é diferente dos habituais. Vou contar-vos uma história, como habitualmente, mas de uma forma diferente. Vou falar-vos da história da medicina, do princípio dela até aos finais do século XIX, mas não vou socorrer-me dos elementos que até hoje nos têm servido de suporte, mas sim de uma outra forma de ver a História e que é através da pintura, ou, mais exactamente, através da forma como um pintor respeitado e de grande nome, encontrou para a contar. O que hoje vão ver durante todo o programa são as telas maravilhosas pintadas por Veloso Salgado e que decoram a Sala de Actos da actual Faculdade de Ciências Médicas de Lisboa, de início chamada Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, cuja construção foi iniciada em 1890, datando os painéis de Veloso Salgado de 1906.
O primeiro painel, tem como figura central Esculápio e representa o início da História da Medicina ou a chamada «Medicina religiosa».Esculápio, ou Asclépio segundo os gregos, foi considerado como filho de Apolo, o pai da Medicina. Na sua mão direita detém um bastão, símbolo do poder e a seus pés, o galo, símbolo da vigilância. Na mão esquerda, a serpente, símbolo da prudência e dos poderes ocultos e a seus pés, a taça, representando a terapêutica. No painel da direita, Esculápio aparece acompanhado de suas filhas Jaso e Panaceia, curando um cego, representado por Pluto, deus da riqueza e que por ser cego não distribui bem a riqueza. Esculápio dá-lhe a vista, para ele fazer uma distribuição correcta da riqueza. O painel da direita, mostra doentes agradecidos a Esculápio. À Medicina religiosa, segue-se «O início da Ciência», em que a figura central representa Pitágoras, o primeiro filósofo que também foi médico.Pitágoras encontra-se acompanhado por importantes filósofos, como Tales de Mileto, logo à sua direita, considerado um dos sete sábios da Grécia e para o qual a substância primordial é a água. A seu lado, Anaximandro, que defendia o poder das forças opostas (calor e frio, seco e húmido), Anaximenes, para quem a substância fundamental era o ar e Heráclito que centrava no fogo o poder primordial. Pitágoras acreditava na imortalidade e transmigração da alma, mas, por outro lado, lançou as bases da matemática e da geometria, concluindo que «tudo é número» e neste «tudo» englobava o universo, cuja harmonia dependia dos números. Desta teoria, nasceu a ideia dos «dias críticos», muito usada em medicina. Teve vários seguidores, neste painel representados à nossa direita, como Alcmeon de Crotona e Filolau de Tarento. O grande painel seguinte, representa no seu centro, Hipócrates, o homem que liberta a medicina da magia e da religião e corresponde à «Medicina Científica».Corresponde à época em que a medicina caminha para se transformar em ciência, embora ainda muito primitiva, em si. À direita de Hipócrates estão representados nomes grandes da filosofia, da medicina e da botânica, como Empédocles de Agrigento, defensor da teoria dos quatro elementos (ar, água, terra e fogo) Demócrito e a sua teoria atomista, Platão, o filósofo que fundou a Academia, Aristóteles, o introdutor do método experimental e criador do Liceu e Teofrasto de Éfeso, considerado o primeiro grande botânico da Antiguidade. Ao lado esquerdo de Hipócrates são representados médicos importantes das Escolas de Cós, Cnide e Alexandria, como Erasistrato de Cós, considerado o fundador da fisiologia e Herófilo da escola de Alexandria e que estudou a anatomia do cérebro e criou os termos duodeno, próstata, osso hióide, para sempre. Hipócrates viria a aproveitar a teoria dos quatro elementos de Empédocles e a criar a teoria dos quatro humores, defendendo que o homem é constituído por partes líquidas e partes sólidas, sendo as líquidas o sangue, a fleuma, a bílis amarela e a bílis negra, resultando do equilíbrio destes humores o estado de saúde ou crase. São desta época da medicina científica, os periodeutas, médicos que percorriam a Grécia de ponta a ponta, tratando os doentes e ensinando. Periodeuta, em grego, significa «eu percorro». O painel seguinte é dedicado por Veloso Salgado, à «Medicina na Idade Média» e tem como figura central o ilustre médico que foi Galeno.São várias as figuras ilustres aqui representadas, mas chamo a atenção especial para duas delas, que representam Celso e Dioscórides. Celso ainda hoje é recordado pelos seus quatro sinais, do calor, rumor, tumor e dor, quando se trata de infecção. Dioscórides foi médico dos exércitos de Nero, mas foi como botânico e farmacologista que se notabilizou. Galeno foi a primeira figura incontestada daqueles tempos, tendo escrito mais de 500 livros e estabeleceu uma doutrina para a circulação sanguínea que perdurou até Harvey. Destaco também Paulo de Egina e Alexandre de Talles. O facto de a Idade Média ter sido uma época altamente perturbada e cheia de conflitos, levou a uma certa estagnação da medicina e grave teria sido o futuro da medicina, se não tivessem aparecido aqueles que a preservaram e transmitiram aos vindouros. Refiro-me aos árabes, que Veloso Salgado, resolveu pintar em dois painéis, cada um de seu lado da mesa da presidência desta Sala de Actos e que dedicou à «Medicina Árabe». No painel da esquerda estão representados, as figuras mais importantes da chamada Escola de Córdova ou escola do ocidente, que foram Abulcasis, Avenzoar e Maimónides, não estando representado Averróis, discípulo destes últimos, e que foi muito ilustre. No painel da direita está representada a escola do oriente ou Escola do Cairo e Bagdade. Neste painel sobressai a importante figura de Avicena, considerado o expoente máximo da medicina árabe. Juntamente com Avicena, podem ver-se as figuras de Razés e de Mesué e Msué o Novo, ali colocados para marcarem bem a importância da farmácia na medicina árabe. E com a chegada ao século XVI, Veloso Salgado dedica-lhe o painel seguinte, que chama de «Medicina da Renascença».Destaca-se em posição central e avançada, Harvey, que comprova e descreve correctamente pela primeira vez a circulação sanguínea, no seu livro «Exercitatio Anatomica de Motu Cordis et Sanguinis in Animabilus», já no século XVII. Entre os vários e ilustres médicos representados neste painel, destaco as figuras de Vesálio, que com o seu conhecido livro «De Humani Corporis Fabrica», ilustrado por um aluno de Ticiano, revela de uma forma sistematizada e moderna a anatomia do corpo humano, Malpighi, Fabrício d’Aquapendente, Paracelso, nome que adoptou e que gostava de ser assim chamado, por se considerar, e a palavra significar, «acima de Celso» e Ambroise Paré, o pai da cirurgia e de quem várias vezes falei ao longo dos meus programas. Lembro apenas os nomes de Eustáquio e Falópio que deixaram para sempre os seus nomes ligados à anatomia e chamo também a atenção para Leeuwenhoek, que ao usar correntemente o microscópio, contribuiu fortemente para que nos séculos seguintes, a medicina pudesse dar importantes passos em frente. Passos e figuras essas que Veloso Salgado pintou no painel chamado «A Medicina dos séculos XVIII e XIX».É este o painel mais preenchido e que contém mais figuras ilustres, que ajudaram a escrever as páginas notáveis da História da Medicina. Num programa deste tipo, de tempo marcado e curto, torna-se impossível dar o realce merecido a todos eles e muito menos dizer sobre cada um deles, um centésimo do que eles mereciam que fosse dito. Cabe-me o ingrato papel de decidir o que dizer e sobre quem, de modo a que pelo menos consiga transmitir aos telespectadores, um pouco do que foi esta época gloriosa da história da medicina. Começarei por falar-vos em primeiro lugar da figura central do painel que, seguramente, será a figura mais conhecida de todos vós, até porque o seu nome está intimamente ligado a um processo cuja referência é visível no dia a dia das donas de casa, quando compram certos produtos, nomeadamente leite. Refiro-me a Pasteur e aos produtos pasteurizados. Este ilustre homem fundou a bacteriologia, descobriu bactérias e fungos, descobriu as vacinas, entre muitas outras coisas, de que não valerá já a pena falar. Dos outros 18 que aqui estão representados, chamo especial atenção para Koch, o homem que descobriu o bacilo da tuberculose, Charcot, o fundador da neurologia e da neuropsiquiatria, Claude Bernard, o introdutor do método experimental na fisiologia, o cirurgião Dominique Larrey, que já vos referi no programa que fiz sobre as amputações e as próteses, Laenec, o descobridor do estetoscópio e Billroth, cirurgião ilustre e de quem ainda hoje se executam algumas técnicas cirúrgicas por si criadas e descritas. Nomeio ainda Lister que lançou a ideia de antissépsia e Jenner a quem se ficou a dever a vacina contra a varíola. É com este painel que termina a descrição pictórica da História da Medicina ao longo dos tempos, sendo conveniente que não se esqueçam que eu disse, no início do programa, que as pinturas de Veloso Salgado estão datadas de 1906, e não poderiam assim ter figuras do século XX. Há contudo um outro painel e para nós de grande importância e que foi intitulado de «Os Portugueses».Parece ter sido o painel que gerou mais controvérsia, pois havia quem defendesse que todas as pinturas da Sala de Actos deviam representar médicos portugueses, mas Veloso Salgado terá vencido e pintou os portugueses apenas num painel, por cima da porta que dá acesso à Sala de Actos. A figura central é Garcia de Orta, que dá a sua direita a figuras como Manuel Constâncio, assim chamado pela sua constância, a sua persistência em atingir os objectivos que se propunha. Nascido pobre, começou como barbeiro, mas conseguiu estudar e ser sangrador e depois disso cirurgião e passados seis anos era já o regente de Anatomia, acabando por ser cirurgião da família real, tendo aproveitado essa posição para conseguir obter da rainha bolsas para enviar discípulos seus a aprender em Londres e Edimburgo. Foi reconhecido como o restaurador da cirurgia em Portugal. Ribeiro Sanches, que perseguido pela Inquisição saiu de Portugal e correu toda a Europa, tendo sido médico de Catarina II da Rússia e primeiro médico dos Exércitos Imperiais. Escreveu vários livros, de que destaco o importante contributo que deu para a saúde em Portugal, com o seu livro «Método prático para aprender e estudar a Medicina». Manuel Bento de Sousa, foi cirurgião do Hospital de S. José e Lente de Cirurgia e Anatomia, tendo desenvolvido intensa actividade paralela, como escritor, cronista e interventor social e político de nomeada. Câmara Pestana, foi professor de Higiene, Medicina Legal e Anatomia Patológica da Escola de Lisboa, tendo sido o chamado Instituto Bacteriológico de Lisboa criado propositadamente para ele poder trabalhar e dar seguimento aos seus trabalhos. Morreu na cidade do Porto, onde combatia uma epidemia de peste bubónica, infectou-se e disso morreu. Sousa Martins, foi o médico de mais nomeada do seu tempo e dele já falei em programa que lhe foi dedicado. Do lado esquerdo de Garcia de Orta, estão representados Amato Lusitano, de quem já falei conjuntamente com Garcia de Orta, no programa sobre Médicos judeus e a Inquisição e foi o médico português mais destacado do século XVI. Zacuto Lusitano, outro médico perseguido pela Inquisição e que também fugiu de Portugal e é considerado o médico português mais importante e destacado do século XVII. Ambrósio Nunes, foi autor de um «Tratado sobre a Peste», em que responsabilizava como causadores da doença, fenómenos naturais, como o terramoto ou a passagem de um cometa por Lisboa, era apesar disso, professor de medicina na Universidade de Coimbra e depois na de Salamanca, o que mostra bem o grau de atraso que ainda se vivia naqueles tempos. Lourenço da Luz, cirurgião de renome, foi Enfermeiro Mor do Hospital de S. José e foi Presidente da Câmara de Lisboa, deputado, par do Reino e Conselheiro de Estado e espantem-se director do Banco de Portugal. Os tempos eram outros e a vida calma que se vivia permitia estes luxos de dupla actividade. Ser bom cirurgião, ser político e financeiro. Por fim, António Almeida., cirurgião ilustre, considerado o renovador da técnica cirúrgica e que foi um dos beneficiados com as bolsas que Manuel Constâncio tinha conseguido.

Estas imagens foram retiradas do trabalho «Viagem pela Medicina com as pinturas de Veloso Salgado», de José Luís Dória.

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