Hoje vou fazer um pequeno desvio de direcção na linha de conduta destes programas que tenho vindo a contar-vos ao longo destes já longos meses. Se até aqui só vos contei histórias ligadas a hospitais, escolas, doenças ou políticas, hoje vou contar-vos a história de uma vida, mais o que ficou para além dela.
Dirão que já vos falei de alguns médicos e não será esta a primeira vez que o vou fazer. Falei, sim, mas de outra maneira. Se, por exemplo, vos falei de Amatus Lusitanus e de Garcia de Orta, foi porque o programa tratava da história de médicos judeus e da Inquisição e não deles em especial. Hoje o que vos vou contar é apenas a história de um médico e só dele. Vou falar-vos de Sousa Martins, mais exactamente de José Tomás de Sousa Martins, nascido em Alhandra, a 7 de Março de 1843 e que viria a morrer 54 anos depois, a 18 de Agosto de 1897, data em que foi sepultado no cemitério da sua terra natal. E se disto vos falo logo de início, é porque me parece importante que fiquem desde já assentes alguns factos, os quais são, não ter nascido em cidade onde pudesse estudar, ter nascido em família humilde, filho de um carpinteiro, ter tido uma vida muito curta, apanhado que foi por contágio de doentes tuberculosos que tratava e ter na sua morte regressado às suas origens, mesmo depois de ter atingido a maior notoriedade.Sousa Martins fez apenas a instrução primária na sua terra natal, pois partiu logo de seguida para Lisboa, para casa de um tio, de seu nome Lázaro Pereira e boticário de profissão e lucro já que era dono da Farmácia Ultramarina. Como disse o nosso ilustre colega e historiador Augusto da Silva Carvalho, este Lázaro Pereira foi mais boticário do que tio para a criança que era Sousa Martins, quando este se albergou em sua casa e teve que pagar com o seu trabalho quase escravo, a cama e a comida que o tio lhe dava. Apesar do pouco tempo que lhe restava do seu ofício de marçano e de criado da botica, Sousa Martins conseguiu ir estudando com regularidade e aplicação e sobretudo com a facilidade e o gosto que o acompanharam toda a vida. Em 1860, já fazia o seu primeiro exame na Escola Politécnica, onde tirou Física, Química, Zoologia, Química Orgânica e Análise Química. Cumulativamente frequenta o curso de Medicina a partir de 1861 e termina o curso de farmácia em 1864 e o de medicina em 1866, tendo obtido prémios em todas as cadeiras. Logo após o curso e sem ter ainda clínica, começou a dar aulas de Física, Química e História Natural no Colégio da Conceição, no Convento das Bernardas e onde continuou a exercer clínica, tempos depois. Mas logo em 1868, apenas dois anos depois da sua licenciatura, concorre ao lugar de demonstrador da Escola Médica, opondo-se a Silva Amado e vencendo-o, tornando-se num caso único na história daquela Escola Médica, onde até aí não houvera ninguém tão novo, com apenas 25 anos de idade, a aceder ao magistério de uma escola superior. Entretanto, fora criada a cadeira de Patologia Geral, até ai associada à Patologia Interna.Sousa Martins irá ser o seu proprietário daí para a frente, depois do seu titular inicial, o cirurgião Joaquim Teotónio da Silva, alterando o programa que este estabelecera e juntando-lhe Semiologia e História da Medicina. Como professor da Escola Médica sempre foi considerado demasiado teórico, crítica que também lhe era feita, enquanto clínico. Mas, todos os que se lhe referem, enaltecem a grande capacidade para interessar os alunos nas matérias a dar, pela sua eloquência e pela amabilidade, afecto e delicadeza com que tratava os alunos, qualidades que também lhe são reconhecidas em relação aos seus pares. Sousa Martins era sociável, mas ao mesmo tempo avesso a festas e à vida social vazia e enfatuada. Quando Sousa Martins inicia a sua vida clínica, talvez não soubesse como ela lhe iria absorver todo o tempo e iria ter características de tão grande intensidade. A sua clientela era especialmente do bairro da Bica, mas passado algum tempo cobria toda Lisboa, rica e pobre. Aliás uma das características de Sousa Martins era dar muitas consultas gratuitas e não digo todas, porque não se perceberia como, não recebendo honorários de ninguém, tinha dinheiro para distribuir por uns e outros. Sousa Martins estava sempre pronto a ajudar o próximo, era um perfeito filantropo e todos sabiam que em estado de aflição podiam bater-lhe à porta que ele os ajudaria. Seria essa característica que, conjuntamente com a sua eficácia clínica, levaria a que se começasse a tecer a teia da sua fama, apesar de muitos acharem que ele era ríspido, seco e duro nas relações com os doentes, contrariamente à sua postura em relação aos alunos, colegas e familiares. Sousa Martins vivia modestamente juntamente com sua mãe e irmãs. Houve quem se apresentasse como seu filho, mas essa questão nunca foi esclarecida e Sousa Martins sempre negou que tivesse um filho. Sousa Martins foi um percursor em várias e importantes coisas. Foi ele que, conjuntamente com alguns colegas, fundou a Casa de Saúde Lisbonense, situada em Campo de Ourique e que durou 21 anos, dando lugar a uma outra, a Policlínica de Lisboa, instalada no Palácio dos Condes de Redondo, a Santa Marta, que se destinava a dar consultas gratuitas e que durou apenas três anos e sempre sem grande afluência, o que é inexplicável, dada a fama de Sousa Martins e o facto de ser gratuita. Foi fundador da Sociedade de Geografia, da Sociedade Portuguesa da Cruz Vermelha e do Jardim Zoológico e foi Presidente da Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa, académico da Academia Real das Ciências, como teria sido presidente da Associação dos Médicos Portugueses, a Ordem dos Médicos de então, se não tivesse morrido um ano antes da sua criação. Foi sócio efectivo da Sociedade Farmacêutica Lusitana, logo após a sua formatura em farmácia e no pouco tempo em que aí desenvolveu actividades, fez muitas e variadas coisas, destacando-se de todos os confrades. Entre essas coisas, conseguiu vencer as dificuldades que havia com os chamados medicamentos de segredo, tendo conseguido que eles não fossem desalfandegados e participou activamente na redacção da Farmacopeia Portuguesa. Teria sido ele o primeiro a usar bata branca no seu serviço do hospital, a que alguns chamavam guarda pó… Ajudou a recuperar o prestígio perdido da Sociedade das Ciências Médicas, embora não tenha sido ele o único responsável dessa recuperação. A sua influência junto do Governo e do Rei, levou a que a Sociedade de Ciências Médicas começasse a ser consultada regularmente sempre que havia problemas graves de saúde pública. Representou o nosso país em vários congressos internacionais e conseguiu impôr-se como homem de ciência, impressionando lá fora como impressionava aqui com os seus manifestos dotes de orador, que muitos gostariam de ter visto aplicados à política, o que sempre recusou. Escrevia quase tão bem como falava, mas a sua obra não foi tão importante como foi a sua acção. Quando morreu, o celebrado Manuel Bento de Sousa, à frente de uma comissão para esse fim constituída, puseram em marcha a construção de uma estátua que perpetuasse o nome e a obra de Sousa Martins. O rei associou-se e deu importante verba e em 1900 foi inaugurada uma estátua da autoria de Queiroz Veloso, prestigiado artista dessa época e que esculpiu Sousa Martins sentado na sua cátedra, um pouco inclinado para a frente, de braço esticado, como se estivesse dando uma aula. As pessoas não gostaram e a troça instalou-se, o que levou a que essa estátua desaparecesse e fosse substituída pela que agora continua a perpetuar a sua vida em frente à Escola Médica do Campo de Santana. Foi inaugurada em 1904 e da autoria de um artista menos conhecido, Costa Mota.Contra esta ninguém protestou. Foi então que nasceu este culto que ainda hoje se mantém, e cada vez mais intenso, que de uma forma incompreensível transformou um homem de ciência num milagreiro, tal a crendice das pessoas que lhe pedem milagres como se fosse santo e lhe têm devoção profunda.Esta devoção deverá ser alimentada por aqueles que sempre vivem à custa de outros, sem esforço e sem mérito. Todos aqueles que viram neste culto a Sousa Martins o negócio chorudo da fabricação de estampas, de bustos, de ex-votos e na venda de flores, um magnífico negócio e não um objecto de beleza.Sousa Martins não deve ser visto desta maneira. Deve ser recordado como foi e como actuou e como continua nas páginas da história da medicina portuguesa. O Hospital de São José conserva várias peças que pertenceram a Sousa Martins e que criam sempre interesse público sempre que são mostradas nalguns eventos médicos. Tivesse sido mais um teórico do que um prático, mais mal encarado e rude do que cortês, como alguns dizem, psicopata ou degenerado superior como alguns inimigos ou invejosos lhe chegaram a chamar, o certo é que Sousa Martins foi um médico ilustre, um percursor, um orador, um perito, um professor, um académico, um congressista, um filantropo e sobretudo um romântico. Como disse Augusto Silva Carvalho, é nesse ser romântico que se concentram todas as facetas de Sousa Martins. Ali coabitam a eloquência, fantasia, amor da família, dos humildes, crianças, árvores, flores, animais, música e belas letras, caridade, desinteresse, sensualidade e ciúme, elogios e hipérboles, arrogância e teimosia, brio e zelo, sacrifício e dignidade. Dele, disse Manuel Bento de Sousa – homem ilustre, porque ajuntou em si as duas bases de todo o enobrecimento – foi brilhante e útil.
Dirão que já vos falei de alguns médicos e não será esta a primeira vez que o vou fazer. Falei, sim, mas de outra maneira. Se, por exemplo, vos falei de Amatus Lusitanus e de Garcia de Orta, foi porque o programa tratava da história de médicos judeus e da Inquisição e não deles em especial. Hoje o que vos vou contar é apenas a história de um médico e só dele. Vou falar-vos de Sousa Martins, mais exactamente de José Tomás de Sousa Martins, nascido em Alhandra, a 7 de Março de 1843 e que viria a morrer 54 anos depois, a 18 de Agosto de 1897, data em que foi sepultado no cemitério da sua terra natal. E se disto vos falo logo de início, é porque me parece importante que fiquem desde já assentes alguns factos, os quais são, não ter nascido em cidade onde pudesse estudar, ter nascido em família humilde, filho de um carpinteiro, ter tido uma vida muito curta, apanhado que foi por contágio de doentes tuberculosos que tratava e ter na sua morte regressado às suas origens, mesmo depois de ter atingido a maior notoriedade.Sousa Martins fez apenas a instrução primária na sua terra natal, pois partiu logo de seguida para Lisboa, para casa de um tio, de seu nome Lázaro Pereira e boticário de profissão e lucro já que era dono da Farmácia Ultramarina. Como disse o nosso ilustre colega e historiador Augusto da Silva Carvalho, este Lázaro Pereira foi mais boticário do que tio para a criança que era Sousa Martins, quando este se albergou em sua casa e teve que pagar com o seu trabalho quase escravo, a cama e a comida que o tio lhe dava. Apesar do pouco tempo que lhe restava do seu ofício de marçano e de criado da botica, Sousa Martins conseguiu ir estudando com regularidade e aplicação e sobretudo com a facilidade e o gosto que o acompanharam toda a vida. Em 1860, já fazia o seu primeiro exame na Escola Politécnica, onde tirou Física, Química, Zoologia, Química Orgânica e Análise Química. Cumulativamente frequenta o curso de Medicina a partir de 1861 e termina o curso de farmácia em 1864 e o de medicina em 1866, tendo obtido prémios em todas as cadeiras. Logo após o curso e sem ter ainda clínica, começou a dar aulas de Física, Química e História Natural no Colégio da Conceição, no Convento das Bernardas e onde continuou a exercer clínica, tempos depois. Mas logo em 1868, apenas dois anos depois da sua licenciatura, concorre ao lugar de demonstrador da Escola Médica, opondo-se a Silva Amado e vencendo-o, tornando-se num caso único na história daquela Escola Médica, onde até aí não houvera ninguém tão novo, com apenas 25 anos de idade, a aceder ao magistério de uma escola superior. Entretanto, fora criada a cadeira de Patologia Geral, até ai associada à Patologia Interna.Sousa Martins irá ser o seu proprietário daí para a frente, depois do seu titular inicial, o cirurgião Joaquim Teotónio da Silva, alterando o programa que este estabelecera e juntando-lhe Semiologia e História da Medicina. Como professor da Escola Médica sempre foi considerado demasiado teórico, crítica que também lhe era feita, enquanto clínico. Mas, todos os que se lhe referem, enaltecem a grande capacidade para interessar os alunos nas matérias a dar, pela sua eloquência e pela amabilidade, afecto e delicadeza com que tratava os alunos, qualidades que também lhe são reconhecidas em relação aos seus pares. Sousa Martins era sociável, mas ao mesmo tempo avesso a festas e à vida social vazia e enfatuada. Quando Sousa Martins inicia a sua vida clínica, talvez não soubesse como ela lhe iria absorver todo o tempo e iria ter características de tão grande intensidade. A sua clientela era especialmente do bairro da Bica, mas passado algum tempo cobria toda Lisboa, rica e pobre. Aliás uma das características de Sousa Martins era dar muitas consultas gratuitas e não digo todas, porque não se perceberia como, não recebendo honorários de ninguém, tinha dinheiro para distribuir por uns e outros. Sousa Martins estava sempre pronto a ajudar o próximo, era um perfeito filantropo e todos sabiam que em estado de aflição podiam bater-lhe à porta que ele os ajudaria. Seria essa característica que, conjuntamente com a sua eficácia clínica, levaria a que se começasse a tecer a teia da sua fama, apesar de muitos acharem que ele era ríspido, seco e duro nas relações com os doentes, contrariamente à sua postura em relação aos alunos, colegas e familiares. Sousa Martins vivia modestamente juntamente com sua mãe e irmãs. Houve quem se apresentasse como seu filho, mas essa questão nunca foi esclarecida e Sousa Martins sempre negou que tivesse um filho. Sousa Martins foi um percursor em várias e importantes coisas. Foi ele que, conjuntamente com alguns colegas, fundou a Casa de Saúde Lisbonense, situada em Campo de Ourique e que durou 21 anos, dando lugar a uma outra, a Policlínica de Lisboa, instalada no Palácio dos Condes de Redondo, a Santa Marta, que se destinava a dar consultas gratuitas e que durou apenas três anos e sempre sem grande afluência, o que é inexplicável, dada a fama de Sousa Martins e o facto de ser gratuita. Foi fundador da Sociedade de Geografia, da Sociedade Portuguesa da Cruz Vermelha e do Jardim Zoológico e foi Presidente da Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa, académico da Academia Real das Ciências, como teria sido presidente da Associação dos Médicos Portugueses, a Ordem dos Médicos de então, se não tivesse morrido um ano antes da sua criação. Foi sócio efectivo da Sociedade Farmacêutica Lusitana, logo após a sua formatura em farmácia e no pouco tempo em que aí desenvolveu actividades, fez muitas e variadas coisas, destacando-se de todos os confrades. Entre essas coisas, conseguiu vencer as dificuldades que havia com os chamados medicamentos de segredo, tendo conseguido que eles não fossem desalfandegados e participou activamente na redacção da Farmacopeia Portuguesa. Teria sido ele o primeiro a usar bata branca no seu serviço do hospital, a que alguns chamavam guarda pó… Ajudou a recuperar o prestígio perdido da Sociedade das Ciências Médicas, embora não tenha sido ele o único responsável dessa recuperação. A sua influência junto do Governo e do Rei, levou a que a Sociedade de Ciências Médicas começasse a ser consultada regularmente sempre que havia problemas graves de saúde pública. Representou o nosso país em vários congressos internacionais e conseguiu impôr-se como homem de ciência, impressionando lá fora como impressionava aqui com os seus manifestos dotes de orador, que muitos gostariam de ter visto aplicados à política, o que sempre recusou. Escrevia quase tão bem como falava, mas a sua obra não foi tão importante como foi a sua acção. Quando morreu, o celebrado Manuel Bento de Sousa, à frente de uma comissão para esse fim constituída, puseram em marcha a construção de uma estátua que perpetuasse o nome e a obra de Sousa Martins. O rei associou-se e deu importante verba e em 1900 foi inaugurada uma estátua da autoria de Queiroz Veloso, prestigiado artista dessa época e que esculpiu Sousa Martins sentado na sua cátedra, um pouco inclinado para a frente, de braço esticado, como se estivesse dando uma aula. As pessoas não gostaram e a troça instalou-se, o que levou a que essa estátua desaparecesse e fosse substituída pela que agora continua a perpetuar a sua vida em frente à Escola Médica do Campo de Santana. Foi inaugurada em 1904 e da autoria de um artista menos conhecido, Costa Mota.Contra esta ninguém protestou. Foi então que nasceu este culto que ainda hoje se mantém, e cada vez mais intenso, que de uma forma incompreensível transformou um homem de ciência num milagreiro, tal a crendice das pessoas que lhe pedem milagres como se fosse santo e lhe têm devoção profunda.Esta devoção deverá ser alimentada por aqueles que sempre vivem à custa de outros, sem esforço e sem mérito. Todos aqueles que viram neste culto a Sousa Martins o negócio chorudo da fabricação de estampas, de bustos, de ex-votos e na venda de flores, um magnífico negócio e não um objecto de beleza.Sousa Martins não deve ser visto desta maneira. Deve ser recordado como foi e como actuou e como continua nas páginas da história da medicina portuguesa. O Hospital de São José conserva várias peças que pertenceram a Sousa Martins e que criam sempre interesse público sempre que são mostradas nalguns eventos médicos. Tivesse sido mais um teórico do que um prático, mais mal encarado e rude do que cortês, como alguns dizem, psicopata ou degenerado superior como alguns inimigos ou invejosos lhe chegaram a chamar, o certo é que Sousa Martins foi um médico ilustre, um percursor, um orador, um perito, um professor, um académico, um congressista, um filantropo e sobretudo um romântico. Como disse Augusto Silva Carvalho, é nesse ser romântico que se concentram todas as facetas de Sousa Martins. Ali coabitam a eloquência, fantasia, amor da família, dos humildes, crianças, árvores, flores, animais, música e belas letras, caridade, desinteresse, sensualidade e ciúme, elogios e hipérboles, arrogância e teimosia, brio e zelo, sacrifício e dignidade. Dele, disse Manuel Bento de Sousa – homem ilustre, porque ajuntou em si as duas bases de todo o enobrecimento – foi brilhante e útil.
Sem comentários:
Enviar um comentário