Já num programa anterior me referi a Garcia de Orta e dele disse o que agora vos quero repetir. Nasceu em Castelo de Vide, no ano de 1500, licenciou-se em Medicina em Espanha, onde frequentou as Universidades de Salamanca e Alcalá de Henares, exerceu algum tempo na sua terra natal e depois em Lisboa, onde foi professor da Universidade e depois, muito novo, em 1534, embarcou na nau de Martim Afonso de Sousa a caminho da Índia, onde conheceria Camões e onde escreveria a sua obra ímpar «Colóquios dos simples e das cousas medicinais da Índia....», com a permissão expressa e licença censória dada pelo muito reverendo Senhor, o licenciado Alexos Diaz Falcão, desembargador da Casa da Suplicação, Inquiridor nestas partes... Os colóquios foram escritos de uma forma exactamente coloquial, em que Garcia de Orta conversa com um personagem inventado, o Dr. Ruano e com o médico Dimas Bosque, licenciado por Valência. Esta obra teria sido condenada ao esquecimento, por ter sido escrita em língua portuguesa, não tivesse sido o interesse e o cuidado do botânico belga Charles de l’Écluse em a difundir em toda a Europa, através de uma tradução que cuidadosamente fez, tendo desse modo, tornado os Colóquios no famoso livro em que se tornou, com mais de cinquenta edições nas mais variadas línguas. Disse-vos também nessa altura, mas não será de mais repeti-lo, que o primeiro poema impresso de Camões foi aquele que escreveu ao Conde de Redondo, Vice-Rei da Índia, intercedendo pelo apoio oficial para aquela magnífica obra
"Favorecei a antigua Sciencia / que já Achiles estimou; / Olhai que vos obrigua, / Verdes que em vosso tempo se mostrou / O fruto daquella Orta onde florecem Prantas novas, / que os doutos não conhecem. / Olhai que em vossos annos / Produze huma Orta insigne varias ervas / Nos campos lusitanos, / As quaes, aquellas doutas protervas / Medea e Circe nunca conheceram, / Posto que as leis da Magica excederam"
Só quero voltar a dizer-vos porque isso se prende com o tema de hoje, que depois de Garcia de Orta ter morrido em 1568, no dia 4 de Dezembro de 1580, doze anos depois da sua morte, foram os seus ossos mandados desenterrar na cidade de Goa, pela chamada Santa Inquisição e queimados em praça pública, juntamente com todos os exemplares encontrados dos Colóquios. Chamava-se «Santa» Inquisição a entidade mandadora de tal crime.
Encontro-me em Castelo Branco, ao lado desta estátua que perpetua a memória deste filho ilustre da cidade onde nasceu em 1511, com o nome de João Rodrigues. Passados alguns anos passaria a João Rodrigues de Castelo Branco, associando para sempre o nome de sua terra, ao seu. João Rodrigues de Castelo Branco viria a ser o médico português mais ilustre e famoso do século XVI, celebrado em todo o mundo com o nome de Amatus Lusitanus, mais uma vez integrando no seu nome a sua origem, agora a sua pátria.
Pensa-se que o nome Amatus resultou de uma derivação latina da palavra hebraica Habib, nome de sua família e que significava querido, dilecto. Nascido numa família de posses pode estudar e licenciar-se em medicina na Universidade de Salamanca. Depois de ter terminado o curso, João Rodrigues de Castelo Branco nunca mais parou. Regressou a Portugal no fim do curso, mas por pouco tempo, cedo se apercebendo que tinha que abandonar o país, antes que a Inquisição tomasse conta dele e o enviasse para uma qualquer fogueira de um qualquer auto de fé. Com a idade de 23 anos, em 1534 portanto, já vivia em Antuérpia, onde rapidamente conseguiu notoriedade e publicou 2 anos depois o seu primeiro livro o «Index Dioscoridis», que ainda não foi assinado com o nome de Amatus Lusitanus. Em 1541 e a convite do Duque d’Este desloca-se para a cidade italiana de Ferrara, para reger uma cadeira na Faculdade de Medicina da Universidade de Ferrara, ou Studium Generali, como ainda eram chamados nessa altura e uma das mais prestigiadas universidades italianas. Aí conheceu e desenvolveu trabalhos e uma sólida amizade com o médico João Baptista Canano, seu assistente e que viria ser um prestigiado e respeitado anatomista. Contudo, mais uma vez sentiu o calor das fogueiras da Inquisição e seis anos depois de chegar a Ferrara, parte para Ancona, em 1547. Durante o período de permanência em Ancona deu-se a entronização de Paulo IV, como Papa e rapidamente se assiste à sua transformação no Papa da Contra Reforma, que, naturalmente, arrastou consigo um aumento da perseguição aos judeus. Amatus Lusitanus sentiu-se inseguro e oito anos depois de ter chegado, muda-se outra vez, com o novo destino de Pesaro. Mostrou ter sido uma escolha mal feita, não tendo ficado a salvo das perseguições, o que o leva passado um ano a mudar-se para Ragusa, hoje Dubrovnik. Esta mudança não foi ainda a última, e uma vez mais teve que se mudar, em 1559, dessa vez para Salónica, sob o domínio do Sultão da Turquia, sendo a cidade onde Amatus Lusitanus viria a morrer. Todas estas mudanças se deveram ao esticar imparável da teia da Inquisição, do estender dos seus poderosos tentáculos, a que ninguém escapava, desde que acusado, bem ou mal, com verdade ou vingança e inveja. Amatus durante todos estes anos foi acumulando um capital de prestígio e notoriedade médica, verdadeiramente invejável. Foi médico do Papa Paulo III, de inúmeros nobres e casa senhoriais de Veneza e Florença, de grande poderio económico e político, mas que nem por isso, o conseguiam proteger ou livrar das teias da Inquisição. A última escolha foi a acertada, pois em Salónica nunca a Inquisição o viria buscar. Infelizmente, só pode viver em paz durante mais nove anos, pois em 1568, com a idade de 57 anos, morre em Salónica vítima da epidemia de peste, enquanto contra ela combatia. Como médico, podemos dizer que morreu em combate. Para além do prestígio que lhe vinha, e o acompanhava para todo o lado, de ser um magnífico médico e também cirurgião, caso raro e de salientar, já que o habitual era os médicos se recusarem a praticar actos cirúrgicos, outra coisa fez que ele fosse notado e conhecido de todos. Refiro-me à publicação da sua mais importante obra «As sete centúrias», que começou a escrever em 1546, em Ferrara e terminou em Salónica, em 1561.
Paralelamente com as Centúrias, Amatus Lusitanus foi publicando outras obras de que se destaca «Comentários a Dioscórides», editados em 1553, em Veneza. Mas, sem qualquer sombra de dúvida, temos que considerar as Centúrias a sua grande obra. Porque se chamavam Centúrias? Porque cada uma delas, descrevia 100 casos clínicos reais, da sua própria clínica. Cada caso recebia um número de ordem e constava da descrição do caso, seguida de comentários a esse caso, justificando a forma como actuou e comparando a sua actuação com a forma como outros actuaram em casos semelhantes e mostrando a razão porque discorda deles. Amatus Lusitanus, em cada caso das Centúrias, serve-se das suas próprias experiências clínicas, mas não esquece a literatura médica existente, mostrando claramente a sua formação universitária. Escreveu as suas obras em latim, o que facilitou extraordinariamente o seu conhecimento e difusão. Os seus biógrafos apontam para 59 edições da sua obra, mas acreditam que terão sido mais. Como disse, Amatus invadia frequentemente o domínio da cirurgia, para emitir opiniões, para inventar técnicas, para realizar operações e para investigar. As suas opiniões sobre os melhores locais para realizar as sangrias, a descrição pela primeira vez das válvulas das veias ázigos ou a sua prótese para a abóbada palatina, ficaram célebres e foram cenário de várias discussões e disputas, nem sempre limpas de invejas e mal dizer e de que já vos falarei. É dele a primeira descrição da encefalite letárgica e também da púrpura. No que respeita a operações cirúrgicas, sabemos que Amatus Lusitanus realizou inúmeras trepanações craneanas, toracotomias, herniorrafias, curas cirúrgicas do hidrocelo, etc... Para se avaliar do prestígio de Amatus bastará dizer-vos que, por exemplo, em relação ao melhor local para executar a sangria no caso daquilo que chamavam a pleurite, os seus opositores foram os respeitados Vesálio, Falópio e Eustáquio, qualquer deles com o seu nome ligado para todo o sempre à medicina. Consideravam Amatus um dos seus pares e por isso discutiam com ele. Neste caso concreto, Amatus defendia que se devia sempre sangrar do lado da pleurite, enquanto Vesálio defendia que a sangria devia ser sempre do lado direito. A prótese da abóbada palatina foi durante muito tempo atribuída a Ambroise Paré, personalidade ímpar da história da medicina e de quem já vos falei mais do que uma vez, sendo para sempre o pai da cirurgia. Pois bem, hoje sabe-se que foi Amatus o inventor desta prótese e que Paré apenas a terá usado nos seus doentes. Historiadores respeitados como Leibowitz, Samoggia e Paiva Boléo, provam nos seus estudos e trabalhos publicados que a paternidade deste invento é de Amatus. Mas, o caso que mais celeuma deu e que chegou a ter contornos pouco limpos, quase mafiosos, foi o da descoberta das válvulas da veia ázigos. A situação chegou a tal ponto que se podia resumir de uma forma bem ilustrativa, dizendo que aqueles que não acreditavam na existência das válvulas, acusavam Amatus de se referir a elas e defender a sua existência. Por outro lado, aqueles que acreditavam, acusavam Amatus de plágio e diziam que o inventor tinha sido João Baptista Canano, de quem já vos falei, assistente e amigo de Amatus. Ora, isto era um ataque ignóbil a Amatus. Se pensarmos que Canano queimou toda a sua obra e portanto nunca referiu tais válvulas e se pensarmos que Amatus se refere ao seu assistente Canano, como colaborador na descoberta das válvulas, temos de concluir que se hoje falamos de Canano é apenas porque Amatus o refere nas suas obras. O mais terrível adversário de Amatus nesta triste história foi Pietro Andrea Mattioli, que se sujou para sempre no jogo feio e sujo em que se lançou, chegando ao ponto de denunciar Amatus Lusitanus como «marrano», expondo-o assim ao ódio da Inquisição e chegando ao ponto de acrescentar um H ao nome Amathus, para fazer um trocadilho com a palavra latina que significava «ignorante» e «sem ciência». Esta controvérsia foi de tal modo conhecida, que Johann Bauhin, quando publicou a sua obra «História Plantarum Universalis», colocou no frontispício do livro, Amatus e Mattioli, como referência a tão grave discussão.
A verdade é que, hoje em dia, o respeito que os historiadores têm pela figura ímpar de Amatus Lusitanus, é inquestionável. Num livro recente editado pelo Instituto di Storia della Medicina dell’Universitá di Roma, Mirko Malavoti, escreve que as «Centúrias» são «una della maggiori testimonanze dello stato della Medicina nei cinquecento», o que não pode deixar de agradar a qualquer português que isto leia. Mas, Amatus Lusitanus, levou mais longe o seu perfil de vida e deixou-nos ainda um importante legado. Na sua Centúria VII, apresenta o seu «Juramento», que nos traz à memória o célebre Juramento de Hipócrates que ainda hoje todos seguimos e juramos. É sabido que Amatus Lusitanus tratou um Papa, cardeais, nobres, generais, mas também tratou soldados, mercadores, marinheiros, prostitutas...Por isso, pode escrever no seu Testamento que «Sempre tratei os meus doentes com igual cuidado, quer fossem pobres ou nascidos em nobreza, sem procurar saber se eram hebreus, cristãos ou sequazes da lei Maometana; Sempre fui parcimonioso nos honorários e muitas vezes sem qualquer paga, tendo sempre mais em vista que os doentes recobrem a saúde do que tornar-me rico pelos seus dinheiros; Como autor de escritos médicos e ao publicar os meus livros quis só promover que a fé intacta das coisas chegasse ao conhecimento dos vindouros, sem outra ambição que não fosse contribuir de qualquer modo para a saúde da humanidade, sem nada fingir, acrescentar ou alterar em minha honra». Grandes palavras para todos meditarem. A começar pelos juízes da Santa Inquisição...
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