Como sempre, recebi o telefonema da nossa querida editora, pedindo-me o texto para a próxima Revista. Com toda a ligeireza, apenas disse que sim, que estava bem e que no prazo concedido lá estaria o artigo.
Foi então que me disse – Vamos a isso. Toca a escrever. Não tive tempo de me perguntar sobre quê.
De uma forma imperativa e contra minha vontade (porque ando há já longos meses, a escrever sobre a tristeza, a dor e a revolta, sem que me saiam palavras de alegria e esperança), surgiram-me logo várias considerações à volta do destino, da morte, da precariedade da vida, da total ausência de controlo sobre ela e da existência de Deus.
E tudo isto por causa de um violento acidente de automóvel, imprevisível e inevitável.A noite estava boa, os astros e as estrelas pareciam estar nos sítios próprios e tudo apontava para a normalidade.
Tínhamos acabado de arrancar de Lisboa, rumo a casa, após mais um velório, cerimónia de crescimento exponencial à medida que nos aproximamos do nosso próprio, como qualquer mortal entenderá.
A auto estrada tinha bastante movimento, mas o pavimento estava seco e nada colocava especial atenção ou prudência de grau I.
Partimos na dobra de 24 para 25 de Abril e logo o céu começou a iluminar-se aqui e ali, com os foguetes das comemorações do 25A, rebentando e abrindo em lágrimas de luz.
Já sobre o Km 23, circulando na pista do meio, a uma velocidade constante, controlada por computador, ao curvar ligeiramente para a direita, surgiu-me o inesperado numa auto estrada. A poucos metros de mim, jazia na pista um volumoso e corpulento cão.
Os neurónios trabalham rapidamente nestas situações. Em centésimas de segundo, analisaram a situação e tomaram a decisão. Embater naquele promontório de carne, com um carro muito baixo e pesado, seria catastrófico e o acidente inevitável. Acertado seria evitar o obstáculo, desviando para a pista da esquerda.
Assim foi. Mas, estando sobre uma curva, fui obrigado a forçar o movimento e o contra movimento. Reflexos testados, resposta da máquina perfeita, mas a conjunção dos elementos levou a um defeituoso controlo, a vários SSS correctores e anti correctores e finalmente, à inevitabilidade do acidente, com embate lateral contra o separador central.
Foi aí que senti que o tempo tem uma dimensão própria, consoante o que está em causa. Face ao perigo, talvez à morte, a rapidez de raciocínio e o tempo parece que se dilatam e permitem «pensar sobre o assunto», como se este não nos dissesse respeito. Isto é, damos connosco a pensar sobre as variadíssimas coisas que se sucedem no ecrã da consciência.
É possível avaliar a situação, com um certo distanciamento, e concluir pela inevitabilidade do acidente, pelos estragos físicos e materiais, nossos e da nossa mulher e avaliar até a fase pós acidente, em que o perigo vai estar mais presente do que no acidente em si.
De facto, ficar imobilizado na pista da esquerda, num princípio de noite, de pouca visibilidade, no seguimento de uma curva, é ficar à espera de, pelo menos, o embate de uma ou mais viaturas rolando entre os 140 e os 200 Km/hora, como habitualmente sucede naquela pista.
Se não foi possível evitar o obstáculo de forma satisfatória, mais difícil parecia evitar o que parecia inevitável.
Imediatamente a seguir ao embate e à constatação que estávamos vivos, bem vivos e com tudo a funcionar, fiz uma tentativa que se mostrou impossível, de levar o automóvel para a pista da direita, numa última tentativa de evitar o grande perigo, mesmo que, para isso, tivesse que passar por algum.
Mas, se o motor trabalhava perfeitamente, o resto não respondia. Ordens do computador ou qualquer outra coisa? Fosse o que fosse, quem agora mandava era a máquina e não o seu dono.
Com os air bags laterais rebentados, o vidro da minha janela feito em fanicos e sem saber se a porta abria, o cinto ainda posto, assisti à temeridade da minha mulher sair para a pista central para conseguir ir à mala tirar o triângulo de sinalização, objecto que naquela situação me pareceu que só serviria para ficar debaixo do primeiro automóvel que connosco viesse embater. Tentei impedi-la, mas de nada serviu. O fogo de artifício já o tinha transferido para os meus piscas em constante piscar avisador. Mas isso era manifestamente insuficiente.
Foi então que liguei para o 112 a pedir auxílio.Mas este auxílio chegou muito antes daquele que pedi, através de uma ambulância dos Bombeiros de Castanheira do Ribatejo (e aqui lhes deixo o nosso muito obrigado), que, parecendo-lhes que saía fumo do carro, prontamente pararam atrás de nós.
Não se enganaram, pois fumo havia, mas desta vez sem fogo. Dois pneus que rebentaram foram o bastante para fazer tal fumarada.
E tinham ainda a memória daquelas duas senhoras que um ano atrás, na mesmíssima situação, foram mortalmente atropeladas junto ao carro sinistrado, por uma viatura apressada.
Estes dois bombeiros fizeram então a boa acção do dia. Não nos abandonaram até a Brigada de Trânsito chegar. Com as suas luzes de emergência, lançavam um aviso à circulação, defendendo a nossa retaguarda.
Entretanto, já eu tinha saído para a estrada e para dizer toda a verdade, nunca mais me passou pela cabeça que qualquer acelera nos viesse agora cilindrar.
Era como se me sentisse protegido e defendido e a partir de agora me bastasse apenas esperar pela BT e depois pelo reboque. Eu estava protegido por Deus e a minha mulher também. Mais os dois bombeiros. Mais todos aqueles aceleras que, antes de eu me sentir assim, não sabiam ainda que iriam ter a possibilidade de um grande desastre, felizmente evitado; mas isso, eles nunca o saberão.
Garanto que não sofri qualquer traumatismo, muito menos craniano, e estou lúcido por inteiro. Eu sei que não parece, mas estou.
E não pensem que poderia estar sob o efeito de vapores, pois a BT confirmou – zero ponto zero, no teste do balão.
Zero ponto zero, é a medida do nosso poder sobre a nossa vida.
Zero ponto zero, é a medida do nosso poder sobre o segundo seguinte de cada instante nosso.
Cem ponto zero, é a medida do poder de quem tem pena de nós e nos vai protegendo nos muitos percalços desta nossa acidentada vida.Publicado no n.º 167 da Revista do Auto Clube Médico Português de Abril/Junho de 2004 e já publicado neste blog em Novembro de 2005, sem imagens
Foi então que me disse – Vamos a isso. Toca a escrever. Não tive tempo de me perguntar sobre quê.
De uma forma imperativa e contra minha vontade (porque ando há já longos meses, a escrever sobre a tristeza, a dor e a revolta, sem que me saiam palavras de alegria e esperança), surgiram-me logo várias considerações à volta do destino, da morte, da precariedade da vida, da total ausência de controlo sobre ela e da existência de Deus.
E tudo isto por causa de um violento acidente de automóvel, imprevisível e inevitável.A noite estava boa, os astros e as estrelas pareciam estar nos sítios próprios e tudo apontava para a normalidade.
Tínhamos acabado de arrancar de Lisboa, rumo a casa, após mais um velório, cerimónia de crescimento exponencial à medida que nos aproximamos do nosso próprio, como qualquer mortal entenderá.
A auto estrada tinha bastante movimento, mas o pavimento estava seco e nada colocava especial atenção ou prudência de grau I.
Partimos na dobra de 24 para 25 de Abril e logo o céu começou a iluminar-se aqui e ali, com os foguetes das comemorações do 25A, rebentando e abrindo em lágrimas de luz.
Já sobre o Km 23, circulando na pista do meio, a uma velocidade constante, controlada por computador, ao curvar ligeiramente para a direita, surgiu-me o inesperado numa auto estrada. A poucos metros de mim, jazia na pista um volumoso e corpulento cão.
Os neurónios trabalham rapidamente nestas situações. Em centésimas de segundo, analisaram a situação e tomaram a decisão. Embater naquele promontório de carne, com um carro muito baixo e pesado, seria catastrófico e o acidente inevitável. Acertado seria evitar o obstáculo, desviando para a pista da esquerda.
Assim foi. Mas, estando sobre uma curva, fui obrigado a forçar o movimento e o contra movimento. Reflexos testados, resposta da máquina perfeita, mas a conjunção dos elementos levou a um defeituoso controlo, a vários SSS correctores e anti correctores e finalmente, à inevitabilidade do acidente, com embate lateral contra o separador central.
Foi aí que senti que o tempo tem uma dimensão própria, consoante o que está em causa. Face ao perigo, talvez à morte, a rapidez de raciocínio e o tempo parece que se dilatam e permitem «pensar sobre o assunto», como se este não nos dissesse respeito. Isto é, damos connosco a pensar sobre as variadíssimas coisas que se sucedem no ecrã da consciência.
É possível avaliar a situação, com um certo distanciamento, e concluir pela inevitabilidade do acidente, pelos estragos físicos e materiais, nossos e da nossa mulher e avaliar até a fase pós acidente, em que o perigo vai estar mais presente do que no acidente em si.
De facto, ficar imobilizado na pista da esquerda, num princípio de noite, de pouca visibilidade, no seguimento de uma curva, é ficar à espera de, pelo menos, o embate de uma ou mais viaturas rolando entre os 140 e os 200 Km/hora, como habitualmente sucede naquela pista.
Se não foi possível evitar o obstáculo de forma satisfatória, mais difícil parecia evitar o que parecia inevitável.
Imediatamente a seguir ao embate e à constatação que estávamos vivos, bem vivos e com tudo a funcionar, fiz uma tentativa que se mostrou impossível, de levar o automóvel para a pista da direita, numa última tentativa de evitar o grande perigo, mesmo que, para isso, tivesse que passar por algum.
Mas, se o motor trabalhava perfeitamente, o resto não respondia. Ordens do computador ou qualquer outra coisa? Fosse o que fosse, quem agora mandava era a máquina e não o seu dono.
Com os air bags laterais rebentados, o vidro da minha janela feito em fanicos e sem saber se a porta abria, o cinto ainda posto, assisti à temeridade da minha mulher sair para a pista central para conseguir ir à mala tirar o triângulo de sinalização, objecto que naquela situação me pareceu que só serviria para ficar debaixo do primeiro automóvel que connosco viesse embater. Tentei impedi-la, mas de nada serviu. O fogo de artifício já o tinha transferido para os meus piscas em constante piscar avisador. Mas isso era manifestamente insuficiente.
Foi então que liguei para o 112 a pedir auxílio.Mas este auxílio chegou muito antes daquele que pedi, através de uma ambulância dos Bombeiros de Castanheira do Ribatejo (e aqui lhes deixo o nosso muito obrigado), que, parecendo-lhes que saía fumo do carro, prontamente pararam atrás de nós.
Não se enganaram, pois fumo havia, mas desta vez sem fogo. Dois pneus que rebentaram foram o bastante para fazer tal fumarada.
E tinham ainda a memória daquelas duas senhoras que um ano atrás, na mesmíssima situação, foram mortalmente atropeladas junto ao carro sinistrado, por uma viatura apressada.
Estes dois bombeiros fizeram então a boa acção do dia. Não nos abandonaram até a Brigada de Trânsito chegar. Com as suas luzes de emergência, lançavam um aviso à circulação, defendendo a nossa retaguarda.
Entretanto, já eu tinha saído para a estrada e para dizer toda a verdade, nunca mais me passou pela cabeça que qualquer acelera nos viesse agora cilindrar.
Era como se me sentisse protegido e defendido e a partir de agora me bastasse apenas esperar pela BT e depois pelo reboque. Eu estava protegido por Deus e a minha mulher também. Mais os dois bombeiros. Mais todos aqueles aceleras que, antes de eu me sentir assim, não sabiam ainda que iriam ter a possibilidade de um grande desastre, felizmente evitado; mas isso, eles nunca o saberão.
Garanto que não sofri qualquer traumatismo, muito menos craniano, e estou lúcido por inteiro. Eu sei que não parece, mas estou.
E não pensem que poderia estar sob o efeito de vapores, pois a BT confirmou – zero ponto zero, no teste do balão.
Zero ponto zero, é a medida do nosso poder sobre a nossa vida.
Zero ponto zero, é a medida do nosso poder sobre o segundo seguinte de cada instante nosso.
Cem ponto zero, é a medida do poder de quem tem pena de nós e nos vai protegendo nos muitos percalços desta nossa acidentada vida.Publicado no n.º 167 da Revista do Auto Clube Médico Português de Abril/Junho de 2004 e já publicado neste blog em Novembro de 2005, sem imagens
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