quinta-feira, agosto 10, 2006

E, se eu vos contasse? – 25º programa – a evolução do transporte de doentes

O problema do transporte de doentes é um problema que se pôs desde sempre, mas particularmente, desde a criação e funcionamento dos hospitais e da aceitação, por parte dos doentes, de neles se internarem. Isto, evidentemente, no que respeita aos doentes comuns, civis, porque no que aos militares respeita, a situação sempre foi diversa. É bom de entender que se um doente comum, o tal civil de que falei, se podia tratar em casa, como ainda hoje há quem faça ou prefira erradamente, os militares quando em campanha ou na frente de combate, não podem ser tratados nos campos de batalha e forçosamente têm de ser retirados dos locais onde foram feridos e transportados para locais onde possam ser tratados ao abrigo das forças inimigas. E tal como sucedeu com a medicina em geral, ao longo dos séculos foram-se alterando os procedimentos e desenvolvendo meios e novas formas de actuação no que ao transporte de doentes diz respeito. Desde os tempos mais primitivos foi necessário transportar doentes, nem que fosse da rua onde tinham adoecido para casa própria ou para a do médico que o iria tratar. Tal como com o tratamento das doenças, assim com o transporte de doentes, foi-se improvisando e resolvendo as coisas de acordo com as possibilidades desse momento. Se, por exemplo, para tratar fracturas se usaram vários materiais de imobilização desde folhas de palmeira a pedaços de madeira até se chegar às imobilizações gessadas, estas mesmas já em franca melhoria,. É de prever que também no transporte de doentes essa evolução tenha acontecido e vários métodos tenham sido usados, embora os livros mais antigos nada disso refiram, provavelmente por não lhe darem importância, ou talvez porque não havia mesmo formas específicas, mas apenas intuitivas de o fazer, e sempre de acordo com o próprio momento e as condições envolventes. O mais provável de todos teria sido o transporte ao colo ou às costas de alguém, ou em cadeirinha feita por duas pessoas ou por suspensão do corpo. É de prever também que depois da invenção da roda, tenha chegado um dia em que alguém tenha pensado em aproveitar a roda para fazer menos esforço e tenha adaptado umas tábuas a duas rodas e se tenha servido dessa engenhoca para transportar doentes. É de prever também que alguém tenha pensado um dia e o tenha passado à prática, em servir-se de animais, como o cavalo ou outro igualmente possante, para transportar doentes deitados de barriga para baixo no dorso do cavalo. À laia de contraponto e mais uma vez como chamada de atenção para a repetição frequente da história e para a forma como o raciocínio e a necessidade fazem o engenho, posso contar-vos que há uns 40 anos, andava eu no Liceu, caí de um muro alto, na quinta de um amigo e devo ter desmaiado, para usar uma palavra que todos entendam. Os meus amigos entraram em pânico, mas que logo se veio a verificar estar controlado. Como a casa da quinta ainda ficava longe, agarraram em mim e deitaram-me no lombo de um possante cão serra da estrela, que me transportou lentamente, apoiado pelos meus amigos para não voltar a cair. O transporte fez-se. Claro que hoje poderei dizer que foi feito cheio de erros médicos e que melhor teria sido não o terem feito, mas naquela altura o transporte, para não falar da medicina, não era o que é agora. De qualquer modo, obrigado amigos. As primeiras referências que encontrei relativas a material de transporte de feridos e doentes são já do século XIX, quer na literatura portuguesa quer na europeia. Antes disso, encontram-se contudo alguns exemplos desse material de transporte em gravuras de épocas anteriores que o mostram, mas não se referem a ele. São frequentes as gravuras em que se vêem reproduções de pequenas liteiras carregadas por duas pessoas, como a que hoje ainda se pode ver nas escadas de acesso ao salão nobre do hospital de S. José. Como é bom de entender, olhando para esta liteira, ela apenas servia para transportar doentes que se pudessem sentar, o que limitava grandemente o seu espectro de utilização. Embora construídas em material leve, se tivermos em conta os varais de sustentação que, esses sim, tinham que ser de madeira rija, mais o peso do doente que podia ser um obeso, temos que concluir que os transportadores ainda tinham que suar um pouco para transportar o doente, mesmo tendo havido o cuidado de, nalguns casos, alongar o comprimento dos varais para melhor distribuição da carga. Por isso, terá sido necessário pensar mais uma vez na roda e nos animais de tracção. Neste exemplo que agora podem ver e que pertence à Cruz Vermelha portuguesa e data de finais do século XIX, faz-se a utilização da roda e da tracção animal, sendo de prever que a ideia que levou à sua construção tenha sido para o transporte de maiores distâncias, que seria difícil a força humana aguentar, e para fins militares, uma vez que a Cruz Vermelha foi criada, como já vos contei em programa anterior, para tratar dos soldados feridos de guerra. Mas a primeira coisa de que o homem se deve ter socorrido deve ter sido da maca ou padiola. Feita de materiais diversos, ao longo dos tempos, para a sua manufactura devem ter servido ramos de árvores e peles de animais e posteriormente madeira aparelhada, talvez couro nos punhos. A evolução deve ter sido lenta, com um melhoramento agora, outro depois. Isso deve ter sido de tal modo assim que ainda em 1852, era oficializada pelo serviço de saúde militar em Portugal um novo modelo de maca que tinha como novas características o poder ser desarmada, para melhor arrumo quando fora de serviço e para seu transporte, ter quatro pés em que apoiava no chão, o que lhe permitia ser usada como cama hospitalar de campanha, se necessário, e ser suportada apenas por dois maqueiros, por ser mais leve que as que anteriormente se encontravam ao serviço. Depois disso, o aperfeiçoamento continuou e posso dizer-vos que na década de 90 do século XX ainda estava em discussão a nível do grupo de trabalho de emergência médica, a que eu pertenci, em representação de Portugal, o modelo de maca padronizado para todos os países da NATO. É natural que alguns de vós se interroguem acerca das razões que levavam a que há escassos 10 anos ainda houvesse esta discussão. Eu explico. Primeiro os homens cresceram para além do que era previsível e hoje facilmente se encontram soldados com mais de um metro e noventa de altura que deixaram de caber nas macas tradicionais. Havia que aumentar as macas. Mas, aumentando-as elas deixavam de caber nas ambulâncias convencionais. E como entrariam na escotilha de um submarino para retirar um doente ou um ferido? Adaptar e compatibilizar comprimento, peso, articulação, funcionalidade, não foi tarefa fácil. Havia um projecto português que esteve sempre em discussão, mas que perdeu na recta final, como é hábito com as coisas portuguesas. Outras histórias, que não estas que vos conto. Quando agora se vêem as macas que equipam as novas ambulâncias, temos que pensar que nos encontramos a anos luz daquelas que deram origem a esta antiga família de material destinado ao transporte de doentes. Ainda no século XIX se usava muito o chamado cacolet que mais não era que duas plataformas dependuradas de cada lado de uma mula e que permitiam transportar dois doentes deitados. Havia também liteiras com tracção por mulas. Os ingleses durante a guerra do oriente introduziram com aparente sucesso aquilo a que chamavam carruagens de ambulância que consistiam em 4 compartimentos assentes numa estrutura sólida sobre 4 rodas que permitiam manobrar facilmente em espaços pequenos. Esses compartimentos eram pequenos mas permitiam transportar um doente deitado e tinham uma porta baixa que podia servir de mesa de apoio durante os tratamentos e eram bem ventilados através de gelosias que tinham uma coberta que os protegia de ventos fortes e da chuva. Na parte dianteira da plataforma havia um caixotão almofadado que servia para transportar doentes sentados e no seu interior transportava barris de água e material cirúrgico e de penso. Estas carruagens de ambulância, como todos as outras variantes que usavam rodas, tinham um conjunto de molas que pretendiam suavizar as irregularidades dos caminhos e tornar o transporte mais cómodo aos doentes. Também a nível das molas, da suspensão como dizemos hoje, se foi sempre evoluindo, jogando com o comprimento das molas, com a sua elasticidade, a sua robustez, a sua colocação e número. Para se fazer uma ideia do número de ambulâncias necessárias, posso socorrer-me de números franceses que estipulavam, no século XIX, que para cada 10.000 combatentes, deveria haver 8 caixas de cirurgia, 250 cacolets e 24 liteiras. Estes números eram baseados nas estimativas de feridos, como ainda hoje se faz, mesmo que esse transporte seja feito por helicópteros ou ambulâncias todo o terreno.
No que respeita às simples macas de transporte por dois maqueiros, a sua evolução baseou-se na possibilidade de serem desmontáveis, no uso de materiais mais leves, na leveza e resistência do tecido da cama do doente, no uso de punhos telescópicos para poder diminuir o comprimento quando arrumadas e modernamente na criação de bases com rodas onde as macas encaixassem. Actualmente essa base de rodas está incorporada, mas encrastável e com mola que a leva à posição de uso quando retirada da estrutura das ambulâncias, como todos começaram por ver nas séries televisivas americanas sobre o serviço de urgência e agora se podem ver a equipar quase todas as ambulâncias portuguesas. Mas outras formas serviram ao longo dos últimos tempos para transportar feridos quando em grande número. Quando o número dos feridos é elevado e o transporte se vai fazer para grande distância é evidente que o transporte pelos processos que tenho vindo a referir não era bastante e não servia. Por isso, usou-se o transporte ferroviário e o transporte em navios e modernamente em aviões ambulância. O transporte em helicóptero é apenas um transporte para actuação imediata e para pequeno número de feridos. Inicialmente eles transportavam dois doentes em macas exteriores, uma de cada lado da cabine, o que faz lembrar os cacolets de que vos falei, com a grande diferença de que este novo cacolet pode voar e é muito rápido... Actualmente usam-se grandes e potentes helicópteros que podem transportar vários doentes no seu interior. Todas esta recente evolução das macas e do transporte para grandes distâncias se prende com os conceitos médicos recentemente incorporados na ciência médica e que têm a ver com a nova ideia de primeiros socorros e das chamadas medidas lifesaving ou salvadoras, que hoje estão na base de uma medicina mais eficaz, com base na reanimação cardiorespiratória e na forma correcta de lidar com os traumatismos craneanos e da coluna. Como tentei contar-vos, todas as coisas têm a sua história mesmo que à primeira vista nos pareça que são coisas tão aparentemente insignificantes que não justificariam que sobra elas nos debruçássemos e nos arriscássemos a perder o nosso tempo. Espero que não tenham perdido o vosso que eu, por mim, não o perdi e só o enriqueci.

2 comentários:

Unknown disse...

Caro Vieira Reis
Preciso muito de falar consigo. Publiquei há meses um livro sobre o Caramulo e dei hoje de caras com o seu excelente blog.
Os meus contactos são: 914586409
tozebv@gmail.com
um abraço Barros Veloso

Unknown disse...

Caro Vieira Reis
Preciso muito de falar consigo. Publiquei há meses um livro sobre o Caramulo e dei hoje de caras com o seu excelente blog.
Os meus contactos são: 914586409
tozebv@gmail.com
um abraço Barros Veloso