sábado, agosto 19, 2006

um certo amargo de boca

Mais uma vez, tempo de férias. Silly season, como é de bom tom dizer-se. Sorte a do tom, de quem ainda se pode dizer se é bom ou mau.
Dá já para perceber que a minha fase lunar está em quarto minguante acelerado. De facto, o mundo aparece-me como aquela bola achatada, que por força da rotina de girar, se entretém a baralhar tudo que nele se contém.
Talvez por isso, seja qual for o lado para que me volte, só vejo o que não quero ver, o que pensava não ter que ver; só ouço o que não quero ouvir e pensava nunca vir a ouvir; e o mundo aparece-me de pernas para o ar, em que tudo é e não é, ao mesmo tempo. Um mundo em que cada vez é mais difícil saber quando as coisas, os valores, os princípios, as palavras, ainda são o que eram ou quando já deixaram de o ser.
Reparem. Como explicar um mundo em que o tio big brother Sam, anuncia as guerras como se fossem espectáculos de circo? Quase todos os dias, destes últimos meses, os desgastados, rotineiros e vazios noticiários dos media, se referem à próxima guerra lá para o lado do oriente. A próxima. Ainda sem data. Única razão porque ainda se não deu a invasão de todos os outdoors de todos países, por vistosos cartazes, graficamente perfeitos e chamativos, que nos anunciarão que no próximo dia tal, pelas tantas horas, se efectuará «uma guerra uma», contra o país Y, sendo objecto e objectivo dessa guerra a destruição do perigoso facínora S. Neles se lerá que a guerra desenvolver-se-á em vários ataques e que o facínora será lidado por alguns milhares de categorizados atacantes, que actuarão por ar, mar e terra. E, em letras garrafais, o cartaz dirá ainda que a guerra será de surpresa. O anúncio do dia e da hora, tem apenas por finalidade avisar o facínora que deverá estar devidamente sentado no seu gabinete de trabalho, onde será procurado pelos atacantes ou atingido pelo míssil. A surpresa, será apenas para iludir o facínora, que pensando que a hora não é para respeitar, se deslocará por toda a casa e poderá assim ser apanhado de calças na mão.
Isto é o que se passa lá fora. Nós, portugueses, que estamos fora de tudo ou à sua margem, apenas nos espantamos quando vemos que todos mandam e decidem por nós. Mas vejamos o que se passa no rectângulo mais a oeste de tudo.
Também aqui se anunciam várias coisas. Por exemplo, que há Universidades, e cada vez mais, como há, e cada vez mais, licenciaturas, e que estas terão que desaparecer por não haver alunos e porque não se vê grande necessidade de ter licenciados a servir bicas. E, se houver falta, que venham os espanhóis, nuestros hermanos. Quanto ao ensino primário (de primeiro) e não digo básico, porque não gosto, também se anuncia que vão ser encerradas várias escolas. Talvez venham a ser, como sucedeu a algumas estações dos caminhos de ferro, transformadas em belíssimos bares, discotecas ou salas de fumo. Anuncia-se também que há disciplinas nucleares, que a acreditar no nome, constituem o núcleo do saber que vai ser construído à sua volta. Em linguagem de pato bravo lobbista, assim uma espécie de caboucos ou fundações. E depois, informam-nos os responsáveis deste silly país, que qualquer fundação serve, mesmo que seja abaixo do limite da resistência, mesmo que seja negativa ou quase zero. Silly, silly country.
E, nos mais importantes rectângulos deste rectângulo, todos bem relvados e bem iluminados para os festejos nocturnos, onde correm, quando correm, 22 homens atrás de uma bola e da barriga ou da mãe do árbitro, como poderemos entender, desde que não se esteja a fazer figura de parvo, que alguns deles sejam pagos com ordenados vinte vezes superiores ao do Presidente Mor do rectângulo, que, da tribuna de honra, algumas vezes os aplaude? Como entender que os «donos» desses homens, gestores dessas grandes empresas, que criaram essa máxima de que o que é bom para eles é bom para o país (estavam enganados se pensavam que tinha sido a General Motors), se dispensem de pagar os impostos devidos e o façam entregando uns maços de papéis sem valor? Silly, silly country.
O que se deve pensar ao sabermos que existe um novo sistema remuneratório para os médicos em serviço na urgência, que consta do pagamento de incentivos consoante o número de altas que derem aos doentes? Poder-se-á dizer que dar alta pressupõe tratar primeiro, e também verificar que não há doença, como pode suceder na Urgência. E, dito assim, pode parecer correcto. Mas, o incentivo diz apenas que será pago a quem der mais altas e consoante o número que for atingido. Dar alta, é assinar a papeleta. É colocar o doente dali para fora. Get out. Tu sais e eu recebo. Eles não estão lá para trabalhar e não são pagos para isso? Ah, isso era se fosse no estrangeiro? O. K., já percebi.
E que país é este, em que num programa em prime time, duma estação televisiva de grande audiência, um dos artistas mais considerados do rectângulo, o berdadeiro presidente da Juuuunta, convidou para o seu programa um outro artista, de várias artes, parece, apenas para ir ali declarar que sim, que era verdade que dormia com a mulher de fulano e que até passou a simpatizar com ele quando o conheceu, coitado, que até era muito simpático e que não, isso não, não era verdade que os filhos assistissem...
E que dizer de ... e de .... e de .... e de .... . Ide. Ide em paz.
Que país, que gente, que férias, que silly mundo.
Que crónica, meu Deus!


Publicado no n.º 160 da Revista do Auto Clube Médico Português Julho/Setembro de 2002 e publicado neste blog em Novembro de 2005, sem imagens

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