Pedro Carneiro
Era o primeiro dia do ano 2002. Madrugada tardia, que outra não poderia ser, já que seguida às doze badaladas, às passas, ao champagne, aos beijos e abraços entre a família e os amigos presentes, à conversa solta, sem freio nos dentes, noite adentro.Estávamos sentados em volta da mesa do primeiro almoço do ano, já quase lanche, quando alguém perguntou a que horas transmitiam o Concerto de Ano Novo. Ninguém sabia, como aliás sempre sucede quando se pergunta sobre coisas ou programas da televisão que merecemos. Alguém disse, liguem lá a televisão, pode ser que esteja a transmitir o concerto. Não estava. Mas, pouco demorou.E, comme d’habitude, lá começaram as duas horas anuais dos Strausses, que não são para ouvir, nem apenas para ver, mas sobretudo para ouver. E, apenas para ver no que respeita ao desempenho músico-teatral do maestro japonês ou do par ou pares de bailarinos que ilustram uma ou outra música de cada um dos Strausses.Foi então que, no meio de uma dessas leves e flutuantes músicas (não me perguntem qual, pois não o fixei, nem é necessário para este efeito), os meus neurónios resolveram dar-se corda, para entrarem bem ginasticados no ano que então começava.A orquestra tocava afinada, como sempre, e como era de esperar. As toillettes das senhoras e os fatos dos cavalheiros eram impecáveis, como se esperava e a ocasião obrigava. As flores, em grande demonstração de alta arte floral, disciplina cromática e conceitos elevados de domesticação da natureza, mostravam ao mundo global a beleza floral de São Remo e o dinheiro que ali estava investido.E o maestro, ah, o maestro, esse, sem batuta, usava o corpo como um todo e todos os pontos desse todo, como a real batuta que levaria a bom porto acústico aquela nave musical. E, com as suas mãos e olhos expressivos, dava o espectáculo, nele habitual, da utilização teatral dos poderes magnéticos da inteligência e da sensibilidade.Tudo batia certo. Os violinos gemiam a preceito, a harpa deliciava, os violoncelos sublinhavam as frases, os oboés, os fagotes, as tubas, as bombardas, as trompas, as violas de gamba, todos aqueles instrumentos de nomes e feitios vários, sabiam o caminho a seguir, como se tivessem entreolhos e nem precisassem das ordens do dono, que, como eles, parecia também saber que não precisava de as dar e lhe bastava pontoar com os seus gestos e forma de estar, a beleza de sons que iam saindo.Tudo batia certo, de facto. As câmaras atentas da televisão austríaca, também elas bem amestradas e mostrando claramente que teriam sido inúmeros os ensaios e impecavelmente feito o roteiro de filmagem, totalmente sincronizado com a música, iam mostrando, frase a frase musical, o instrumentista fundamental em cada passagem, a paixão com que cada um tocava ou a indiferença nítida e tecnocrática dalguns.Ora nos mostravam o naipe dos violinos, ou o pequeno solo da flauta, ou os dedos sensuais da harpista afagando as cordas que lhe maltratam os delicados dedos, logo um pouco da performance do maestro, logo depois os dedos ágeis do pianista, o trombone, novamente a flauta e o fagote, tudo num fartote de imagens, ensaiadas e ensinadas a ler a música. Um regalo para o ouvido, um regalo para o olho.E, no meio de todos estes instrumentos, no meio de todos estes instrumentistas, um só se destacava pelo silêncio que a pauta musical lhe impunha. Um só deles, permanecia em palco, fardado como os restantes, segurando duas massas almofadadas, as mãos quase apoiadas na imensa pele de porco esticada do timbale, escutando atentamente, esperando a vez, esperando o sinal, esperando o desejado momento em que, embora de forma breve, iria participar naquele festim de música. Era o percussionista sinfónico.Foi então que os meus neurónios, no seu afã de se darem corda, começaram a pensar que não havia entre todos aqueles intérpretes, nenhum que tivesse a responsabilidade do percussionista ou vivesse tão intensamente a angústia. Não era fácil a vida do percussionista. É certo que, tal como os outros, sabia ler música, tinha uma pauta em frente do nariz que lhe marcava as entradas e lhe dizia o que tinha que fazer. É verdade, sim. Todos sabemos que é verdade. Mas, já pensaram nos efeitos de desatenção? Já pensaram nos efeitos que causa a espera, a longa espera, pelo momento, pelo seu momento, o seu único e importante momento de dizer e mostrar a importância do seu papel, de mostrar o som do seu instrumento e a forma como ele é indispensável? De mostrar como sem a sua pancada seca naquela pele esticada, ficaria um vazio, um buraco imenso na teia de notas daquela rede musical? Já avaliaram a responsabilidade de tal pancada?Se um 2º violino não passar o arco com a pressão devida ou se um dos seus dedos não comprimir a corda como deveria, ou se a unha não conseguir o pizicatto devido, outros violinos o farão correctamente e nem se dará conta disso ou pouquíssimos darão. Se a corda da harpa não for esticada devidamente, talvez sintamos um pequeno arrepio que nos fará ter dúvidas sobre a correcção daquela nota. E, por aí fora, uns instrumentos cobrindo outros, um punhado de sons sobressaindo e um conjunto que parecerá harmónico mesmo que o não seja na sua totalidade.E, se o percussionista solitário não der a pancada na altura certa? E se não a der com a força devida? E, se não abafar com a outra mão a estridência da pancada? E se se esquecer de a dar?Por isso, o rosto tenso, os olhos bem abertos, não se vão fechar, adormecidos, embalados pela cadência melódica da música. Atento, tenso, vai virando as folhas da pauta, mais descansadamente do que alguns que até para isso parecem não ter tempo e, por vezes, tão descansadamente, que já vai mais mesmo embalado e de tal modo, que sente um esticão em todo o corpo, quando se apercebe que se tinha deixado atrasar e os compassos que vê não correspondem àqueles que ouve. Apressadamente, volta a folha uma e outra vez, e quando verifica que já recuperou o andamento e que se aproxima cada vez mais o seu momento de glória, mais tenso fica, mais aparentemente desperto.E, nós continuamos a ver os músicos, agora um, logo outro, agora o maestro, dono e senhor de todos aqueles sons. E, quando a câmara nos mostra outra vez o percussionista e a música nos mostra também o caminho inevitável, nós percebemos que o momento do percussionista está a chegar. Vemos os pequenos gestos que faz, o esticar e encolher dos braços, o pequeno gesto de relaxe, de descontracção, o toque da pele, o rodar da massa, o ligeiro aperto do esticador, o cálculo da distância da massa à pele, o cálculo mental da relação entre a força de percussão e o som desejado. Tudo isso vemos se estivermos atentos. Os olhos do percussionista procuram naturalmente as mãos do maestro, o corpo do maestro, atentos ao sinal que irá ser emitido e a que ele terá que responder com precisão. Momento que surge, marcado por toda a orquestra que prepara a sua entrada e que nós sabemos que prenuncia o fim anunciado.É então que os mais atentos ou prevenidos, poderão ouvir um estranho som, de instrumento desconhecido, que nos faz lembrar um suspiro de alívio. Já percebem a angústia do percussionista?Quando perceberei eu que os meus neurónios estão desafinados?
Salzburgo em 1811 – gravura de Christian Gottlieb Hammer
CVR
www.darcordaoneuronio.blogspot.com
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