quarta-feira, março 08, 2006

De que falar, então?



Lembro-me que quando comecei a escrever crónicas para este meu espaço «Dar corda ao neurónio», escolhi para tema o Verão e a silly season. Voltamos a estar na mesma época do ano, 3 anos passados. E hoje o que me pergunto, fatalmente, é se mudou alguma coisa neste espaço de tempo.Li as crónicas que escrevi até aqui e reparo, com amargura, que em todas elas há tristeza, desânimo, falta de fé no futuro dos homens e ainda mais no do país, apesar de uma preocupação prévia de não escrever tão negativamente.Será que hoje vou conseguir inverter este sentido e falar de alegria, de esperança, de futuro?Mas se este espaço não é de humor, mas de reflexão, como poderei fazê-lo? Se não se trata de imaginar, de criar factos, de inventar situações, mas, na verdade, falar apenas do que existe, do que é, do que nos faz pensar, não terei outro remédio se não sujeitar-me e sujeitar-vos, no caso de vocelências lerem os meus arrasoados, a falar do estado do nosso pequeno mundo, hoje, dia 9 de Agosto de 2004, data em que estou a escrever para vós e para mim.E sendo assim, de que posso eu falar? Dos incêndios que varrem o país de norte a sul, dos milhares de hectares já ardidos e que já excedem em muito a área ardida o verão passado, esse verão de tão triste memória, que se pensava então que não podia haver pior? Falar dos incêndios ou daqueles que tinham prometido ao país que iam corrigir as falhas havidas o ano passado, que iam aumentar os meios necessários ao combate dos incêndios, que iam fazer justiça e castigar aqueles que precisavam de ser castigados? Falar da verdade ou da mentira que envolve todas estas labaredas?De que mais poderei falar? Da situação política em que vivemos ou vegetamos? Falar de vaidades, de abandonos, de indecisões, de encenações teatrais a várias vozes, para um final já escolhido desde a subida do pano? Da política e dos seus intérpretes? Das «prima donnas» para todos os cantos e motivos? Do brincar aos quatro cantinhos da decisão política? Do apanhar do comboio electrónico? Do «e-gouvernment»? ou do «é governo?».De que hei-de falar afinal? Das praias que ficaram sem bandeira azul? Das derrapagens orçamentais, como a da Casa da Música do Porto, a tal que nasceu para o Porto-Capital da Cultura e em que, anos passados, a única música que nela se ouve é a dos jequepotes seguidos, ganhos não sei por quem, mas que por alguém terá de ser. Já sei.
Vou falar do Euro 2004, pois sempre posso falar de alguma coisa agradável, de algo que uniu os portugueses, que lhes deu algum orgulho, que já passou, é certo, mas que houve; e isso, só por si, já não foi mau. Falar de como pode a palavra de um brasileiro, bom timoneiro eu sei, levar um país a ter em conta as suas palavras e a, de repente, mesmo de repente, dar-se conta que Portugal tinha uma bandeira e tinha um hino. Não quero falar, nem falo das bandeiras com pagodes em vez de castelos, porque isso era falar de outros pagodes, mas apenas da bandeira símbolo, verde rubra.De repente, muito de repente, os portugueses deram conta que a sua bandeira se podia ver e não envergonhava. Que era importante que cada janela de cada casa, de cada automóvel, se mostrassem assim de verde e rubro, num Portugal pintado de fresco, de cara limpa e orgulhoso das suas cores e da sua história.Mas foi sol de pouca dura. Uma derrota bastou para que se voltasse ao mesmo.E do hino nem se fala. Voltámos ao silêncio, para evitar o canto envergonhado, o abrir e fechar de boca de um pleibeque fingidor. Eu sei que neste caso o problema não é só nosso, pois basta ver as imagens das equipas no início dos jogos para perceber que a maioria deles desconhece totalmente o hino dos seus países ou não sente nada para o cantar.De que falar afinal? Da portuguesa que, espera-se, virá a ser a primeira dama dos Estados Unidos e ficará para sempre como um marco, na viragem da desastrada política de Bush, para uma política menos contestada porque mais humana, mais social, mais dialogante, menos baseada no poder das armas e mais suportada pelo poder da palavra e da acção. Uma política de que não seja possível fazer-se um novo Fahrenheit 9/11 e que possa dispensar Michael Moore dessa tarefa. Talvez isso possa levantar o ego português, apesar de tudo isso se passar no outro lado do mundo.Falar da equipa imensa de cientistas portugueses que por esse mundo fora, têm os seus privilegiados cérebros ao serviço da humanidade, mas integrados e pagos por outros países, que não o nosso?Ou falar do número necessário de trabalhos publicados para que, no nosso país, todos aqueles que foram mordidos pelo «bicho» da investigação, possam vir a ter a benesse de uma magra bolsa, como se só fosse possível investigar com largos anos de traquejo, com créditos firmados, já «sindicalizado» como investigador! Não haverá aqui, nesta exigência, qualquer coisa que parece estar ao contrário? A magra bolsa de investigação não será para quem dela precisa, porque não tem outra forma de se manter vivo, porque não tem outra forma de poder comprar o bife e o livro? Ou será antes, como parece, para aqueles que já dela não devem precisar?Quantos trabalhos poderá publicar um investigador por ano? Mesmo que lhe fosse possível publicar um por mês (e que qualidade teriam esses trabalhos?), precisaria de manter esse ritmo inalterado durante 10 anos, para ter direito a concorrer, não sei se a ter, uma bolsa de investigação.Qual será a finalidade de tal medida? Evitar abusos, proteccionismos, má gestão de recursos? Mas, se é por isso, não é mais fácil corrigir esses abusos, depois de identificados, impedi-los e castigá-los? E os responsáveis de departamento, os orientadores e toda a legião de «instalados» não pode assegurar processos limpos?Percebe-se bem que os cérebros emigrem. Percebe-se bem que não voltem.De que falar então? Das praias cheias, da subida em flecha da compra dos carros topo de gama, das férias preferidas dos portugueses, dos novos brasis, das ilhas tropicais e dos spas? Ou da prisão da idosa que entregou uma nota falsa de 10 ou 20 euros para pagar as compras do supermercado, desconhecendo que era falsa e que após a passagem pela esquadra, pediu aos polícias que a transportaram de volta, que, por favor, não a deixassem ao pé de casa, porque não queria passar pela vergonha de algum vizinho seu a ver sair de um carro da polícia?De que falar, então? Sinceramente, não sei. Fico por aqui. Pode ser que na próxima crónica as coisas mudem e se possa falar das vitórias estrondosas dos portugueses nas Olimpíadas que vão começar. Mas, até estas me parecem viciadas. As olimpíadas não são para amadores? Não estão os profissionais excluídos? Então que equipa de futebol é a nossa e a de outros países? O que é que hoje se pode entender, sem termos que nos interrogar, sem termos de dar corda ao neurónio?
CVR
(substitui o colocado em Novembro de 2005, agora com imagens)

Sem comentários: