sábado, novembro 05, 2005

Alegria e tristeza

Os arautos luminosos e acústicos do Natal, estão aí, anunciando a data futura que aí vem, a tal que se diz «ser todos os dias». Seria natural que hoje escrevesse sobre o Natal ou sobre um outro tema que com ele tivesse a ver. Tudo indicava que assim ia ser, apesar de eu nunca saber sobre o que vou escrever senão quando me sento para o fazer.
Não fora um doloroso e desagradável imprevisto e seria esse o tema. Mas, sucedeu que há horas atrás morreu um amigo meu, daqueles de infância, daqueles em que se perde ou se dilui bastante a fronteira entre o amigo e o irmão.
Veio-me logo à cabeça um texto que há seis anos atrás escrevi no dia em que morreu o meu antigo professor, vizinho e amigo, António Gedeão. Sobre uma frase de alguém muito importante no mundo da cultura, de quem esqueci o nome, mas não o que escreveu, construí o texto a que chamei «Na morte de um amigo»:

O poeta morreu esta manhã, mas eu não sou obrigado a acreditar.
A dor dói muito, e dói tanto mais quantas mais razões houver para
desejarmos não a ter. Não no sentido de a sentir, mas no sentido de não
ter para ela, a razão de a sentir.
O poeta morreu esta manhã, mas eu não sou obrigado a acreditar. Isto
é – eu já senti a dor, ainda agora. E, tão brutal foi, que brutalmente a
senti, quando a notícia me atravessou na ponta de sua espada, num
golpe rápido e seco, tão rápido, tão seco, que eu não fui obrigado a
acreditar.
E, no entanto, o poeta morreu. Esta manhã, dizem. Mas, que sei eu da morte do poeta, se ele, para mim, ainda não morreu e eu não sou obrigado a acreditar naqueles que me dizem que o poeta morreu. Esta manhã, dizem.
Aliás, o que é a morte? O que é isso a que chamam morte? A morte só
é, se nós quisermos que ela seja. Com a excepção, bem óbvia, da nossa
própria. E, mesmo nessa, não temos que acreditar, mas apenas aqueles que nos sobreviverem e que se debaterão depois com a dúvida de saberem se nós morremos, ou não.
A morte, o que é? O cessar de todas as funções vitais, dizem alguns, ou
quase todos. Mas, será realmente isto? Será realmente, só isto? Ou nem
isto será?
Que sabemos nós da morte, para além da sua representação, do seu
cerimonial, do teatro da sua dor?
Se pouco sabemos, ou nada sabemos, porque temos que acreditar nela?
Da morte, eu só sei da dor que me atravessa quando um amigo morre,
ou alguém me diz que um amigo meu morreu, como hoje sucedeu com
o poeta, que todos insistem em me dizer que morreu esta manhã. E,
para mim o poeta não morreu.
Não sei da morte. Só sei da dor.
E, se é verdade que o poeta morreu, mesmo assim, eu não sou obrigado
a acreditar.

E também hoje não sou obrigado a acreditar que este meu amigo de infância morreu.
Contudo os meus neurónios começaram a formar e disparar em todos os sentidos as cinco letras de morte. Morte. Morte.
E, de repente, deram-se conta que até a morte ou os seus rituais já não são o que eram.
Hoje, o ritual da morte tem outro sentido. Já não é feito de velórios a tempo inteiro ou completo, com máscaras de dor, silêncios, orações, choros, histeria. Hoje, a família e os amigos velam o morto por tempo certo, tal como os contractos de emprego. O acompanhamento do morto termina no momento em que a capela é encerrada, à chave, por razões de segurança ... Assaltantes empreendedores também já investem nestes locais de dor e reflexão, fazendo concorrência às agências funerárias ...
Se a morte acontece na residência, a maioria dos mortos das cidades, já sai de casa dentro da urna, mas em pé, obedecendo à lei do espaço do ascensor.
No funeral, se o morto vai para um cemitério que fique longe, a fila dos acompanhantes é constantemente infiltrada por Fangios e Schomackers, alguns verdadeiros fãs do tunning, acrescentando com essa sua paixão música techno ou similar ao silêncio do cortejo fúnebre.
E se tudo se passar na autoestrada, lá teremos o carro funerário a parar na portagem, para cumprir o dever cívico de pagar a taxa devida a quem explora.
Já haverá via verde no Céu?
E se o morto for para uma capela privada, pertença de qualquer instituição respeitável, pode suceder, como sucedeu no velório deste meu amigo, que os familiares, amigos e outros acompanhantes tenham de passar pela fieira do controlo securitário, para em troca de um documento pessoal receber um cartão de ingresso de «visitante».
Neste caso, o segurança exigia um cartão com fotografia, mas que não fosse o Bilhete de Identidade. Os meus neurónios ainda não conseguiram obter explicação para tal critério ...
É, no mínimo, surrealista visualizar aquele quadro de um respeitável morto deitado numa não menos respeitável urna de mogno, rodeada de flores, no centro de uma lindíssima capela do século XVIII, cercado ou envolvido pelo seu pequeno mundo de amigos, todos eles de tabuleta ao peito, exibindo o seu V de visitante.
Os amigos não são visitas. São amigos. Será possível explicar a quem parece tão terrivelmente obcecado pelo medo, o controlo e a segurança, que quem vela um amigo só pensa nele?

Mas vem aí o Natal. Festa de paz, alegria, concórdia, esperança e união. Tempo de esperança.
Festejemos então e acalmemos nossa revolta por este mundo estar como está, girando à mesma velocidade, com as mesmas fases da lua, as mesmas estrelas, é certo, mas com sinais cada vez mais evidentes de que um destes dias haverá um novo bang bang que o fará voltar à harmonia das coisas e das pessoas.
É Natal. Tempo de concórdia e de esperança. Comemoremos.
Feliz Natal. Bom Ano Novo.

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