sábado, novembro 05, 2005

Reflexões sobre a arte de ser chefe

Estava há poucos dias sentado na esplanada de um pequeno café de uma pequena e sossegada cidade do Ribatejo, quando se me deparou um espectáculo, não anunciado, e de plena rotina, que, sem os actores disso terem tido a menor ideia, me puseram os neurónios à volta, dando-se corda.
O pequeno café tipo pronto a comer, com duas donas do falso tipo «olá tia, tá boa?» situa-se numa daquelas ruas só para peões.
Portanto, e em princípio, é uma rua sossegada, com um movimento continuado, mas ligeiro, de pessoas que compram, de pessoas que olham para aquilo que pretendem comprar ou gostariam de comprar, de pessoas que apenas passam, porque aquele é o caminho que leva aonde querem ir e também daquelas pessoas que, como eu, querem estar um pouco em paz, lendo sossegadamente enquanto saboreiam aqueles 50 centímetros cúbicos de um café quente e aromático, como é aquele que servem no local onde eu estava sentado.
Sentado, sossegado e lendo.
Foi então que um barulho inusitado, mais ruído que barulho, me tirou dessa paz em que me encontrava e me fez olhar. E vi que, numa marcha lenta, avançava por aquela rua de peões, uma pequena camioneta dos serviços camarários, que, de quando em quando, parava durante escassos minutos.
Quando me apercebi disso, reparei que eram três os actores desta súbita alteração na paz que eu vivia, mas só quando definitivamente interromperam a minha leitura, e me obrigaram a olhar continuadamente para a sua performance, tal o ruído que provocavam, é que eu vi exactamente que, dos três actores, dois eram homens acompanhados por uma jovem mulher.
Os actores eram estes. A cena era aquela rua de peões, com pavimento de blocos préfabricados, candeeiros modernos de 50 em 50 metros, de ambos os lados, colocados intercaladamente de um e outro lado, bancos corridos, de madeira, apoiada em blocos de cimento, floreiras redondas, do mesmo cimento, com flores viçosas, naturais, em mar de piriscas de cigarros e um ou outro pau de gelado.
Por causa deste dispensável leito para flores, convenci-me inicialmente, que a larga boca do gordo tubo que a rapariga segurava nas mãos estava ligado a um forte aspirador que levaria na sua feliz e higiénica sucção, todo aquele lixo que gente selvagem para ali atirara.
Mas, não. Afinal não era um aspirador, mas apenas uma mangueira de água.
A jovem que segurava a grossa mangueira estava fardada e com colete reflector, apesar do sol que fazia. Aproximava a larga boca da mangueira das floreiras altas e, como por encanto, a água começava a correr para, de repente, acabar, em golpe de mágica. Na floreira seguinte, a cena repetia-se.
Foi então que reparei no personagem principal, naquele que decidia quando a água corria ou deixava de correr. Era o mais vigoroso dos três, entre os 30 e os 40 anos, ar gingão, de malandro ribatejano, telemóvel à cinta, sem farda, bem vestido, cigarro entre os dedos da mão esquerda, ar imperturbável e distante.
Quando a camioneta parava e a rapariga aproximava a mangueira da floreira, aquela imperturbável criatura, num gesto decidido, único e fundamental, movia a manete da torneira do depósito da água e permitia, com o seu gesto magnânimo de noventa graus, que a água corresse livremente e fosse alimentar as aquecidas flores amestradas. E, do mesmo modo, decidia quando a água já era bastante, sem cuidar de saber o que elas diriam.
Sem que fizesse qualquer gesto, pois isso representaria trabalho, a camioneta reiniciava a marcha lenta, instruído que devia estar o motorista para controlar através do retrovisor, as tarefas que se realizavam na retaguarda da camioneta.
Começava então a parte fulcral e majestosa da peça teatral. A camioneta avançava lentamente e, atrás dela, seguiam a rapariga, devidamente fardada, segurando nas mãos a mangueira, em posição elevada que não permitisse o seu arrasto pelo chão e o chefe. Este caminhava direito, sem uma palavra para a trabalhadora às suas ordens, em passo compassado, fumando, sempre fumando, telemóvel à cinta, sua ligação permanente ao mundo dos chefes e quejandos.
E, vinte metros adiante, nova paragem, nova cena, numa performance non stop.
Os meus neurónios não resistiram a tal espectáculo e desataram a dar-se corda para além da conveniência do seu prazo de validade.
Apesar do aquecimento ou mesmo sobre aquecimento a que se estavam a entregar, era impossível pararem, pois tinham a certeza de que se tratava de um assunto de interesse nacional e não podiam deixar de dar o seu contributo para a pobre nação sair de tão trágica crise, ali tão bem ilustrada por aqueles três actores desconhecidos.
Pobre nação esta que tem de perder a sua identidade nacional, a sua maneira tão própria de ser e actuar, por ter de rapidamente se desfazer dos milhares de chefes que a arrastam para a crise em que está mergulhada.
Como pode avançar um país, quando para se fazer a tarefa simples de regar umas flores, são precisas três pessoas, todas empenhadas num acto importantíssimo e vital.
Já pensaram no que passará pela cabeça do chefe? A importância que ele se dá, a importância que ele pensa ter, a importância que quer transmitir aos outros? Um senhor, um verdadeiro senhor, um verdadeiro artista português, empossado em rei da água, comandando em pequenos gestos decididos, o início e fim do trabalho da funcionária da mangueira, o início e pausa do trabalho do motorista. Impressiona aquele ar de chefe, de detentor do poder, pequeno realmente, mas enorme naquele microcosmo onde ele é chefe.
Delegado sindical não deve ser. Pagam-lhe para passear atrás duma pequena camioneta e dão-lhe uma manete e poderes para decidir quando e como.
E, no fim do mês, lá estará o seu vencimento, médio por certo, depositado na sua conta do banco.
Dorme sossegado. Não tem pesadelos. Cumpre escrupulosamente a sua gigantesca tarefa de abrir e fechar a manete, nunca mais de noventa graus.
Uma brincadeira de país. Um jogo de faz de conta. Jogos de água e fogo de artifício. Pão e circo. Triste País.


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