domingo, novembro 06, 2005

contos da biblioteca 1

Não tenho dúvida de que entre o melhor que a vida me oferece está este prazer espiritual da descoberta das coisas antigas, bem modernas a maioria das vezes.
Gosto do cheiro das bibliotecas e de alguns livros. Não gosto do cheiro do pó e do mal que ele me faz. Mas deste cheiro que neste momento estou sentindo, gosto de verdade.
Gosto de olhar à minha volta enquanto espero os livros que requisitei e ver múltiplas coisas que me agradam.
À minha esquerda, ou a Ocidente, como se poderia dizer, tenho o verde calmo do relvado que sempre cria em mim um estado de desejo e de emoção. Sempre que olho um relvado, sinto uma verdadeira atracção física, uma emoção bem forte que lembra o desejo de contacto físico. Um contacto físico total, um contacto com todos os lados do meu corpo, com este a rebolar, a rebolar.
Em frente, ou a Norte, tenha a tapeçaria mural, gigantesca, do Camarinha (onde é que este gajo não terá uma tapeçaria? Foi um encher vilanagem...) que penso representar o Rei D. Manuel e o seu Livro de Horas, mais uma representação banal das várias profissões ou artes da época. E vejo ainda, as cabeças e as costas dos muitos que estão na minha frente, lendo e consultando livros, tomando notas, concentrados.
Para a direita, ou para Oriente, a mesma paisagem humana das pessoas que aqui estão a ler e trabalhar, velhos e novos, eles e elas, bonitas e feios, com óculos e sem eles. Mas todos com qualquer coisa que me agrada, uma certa luz que vem de dentro.
Para trás, ou para Sul, é a saída e a chegada dos livros que eu e outros pediram. É de lá que todos vêm, depois distribuídos nos carrinhos de rodas, empurrados por funcionárias que ora parecem contrariadas, ora parece terem alguma coisa em comum com todos que ali se encontram. Um pouco como em todo o lado. Os que gostam do que fazem e os que fazem o que fazem, sem interesse ou prazer.
14 x 16. Tantos são os lugares desta magnífica sala de leitura, que nunca vi totalmente cheia, mas que também nunca me deu a sensação de vazia. Há sempre mais gente do que se espera. E são 244 lugares.
É giro ver o monte de livros em cima das mesas, a azáfama lenta de todos. Ninguém tem pressa, mas todos trabalham depressa. O ler é calmo, mas é rápida a deglutição mental das ideias recolhidas. Memo nos velhos sinto isso. E há sempre um sorriso, de quando em quando, aqui e ali, um prazer visualizado.
Sucedeu-me hoje algo que nunca me tinha sucedido. Esperei 40 minutos pelos livros e mais poderia ter esperado, que eles nunca chegariam. Parece ter sucedido algo de estranho nos canudos pneumáticos onde metem as requisições que teriam levado as minhas e não sei mais quantas, não para o seu destino anunciado, mas para um outro qualquer que as recebeu e se esteve nas tintas para o engano. Tive que fazer novas requisições, que felizmente chegaram ao destino.
Se isto foi desagradável, há que ter em conta a face boa de tudo. Este engano permitiu duas coisas. Primeiro, aprender que se os livros demoram mais que o habitual se deve perguntar por eles e talvez sugerir que – não estarão os canudos avariados? Perguntar não ofende, sobretudo quando se tem razão. Segundo, poder escrever todas estas linhas, que numa espera normal seriam impossíveis.
O que se pode perguntar é se valeu a pena escrever. O que é que eu escrevi que merecesse ser registado? A resposta não pode ser dada hoje. Mas, noutro tempo. Não, noutro dia.

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