sábado, novembro 05, 2005

Considerações em volta dos zeros corruptores

Por vezes é fácil dar corda ao neurónio. Pois são tantas, e de tal monta, as coisas que acontecem no dia a dia português e de tal forma acontecem, de tal forma invadem o nosso quotidiano, trazidas de várias e diferentes maneiras, seja pelo vento das palavras dos amigos, seja pelos impulsos electrostáticos do ecrã de televisão, onde estáticos locutores, por vezes eléctricos, debitam as desgraças do mundo, de uma forma tão continuada, que chegamos a pensar que eles vivem naquelas cadeiras, rodeados daqueles cenários, atrás daquelas mesas e que só se levantarão para a toalete vesical e intestinal que a fisiologia impõe, por isso, dizia eu, é fácil nestas condições dar-se corda ao neurónio.
Basta deixar pousar essa informação, evitar dar-lhe o tratamento habitual de deixá-la entrar a 10 no ouvido direito para sair a 300 pelo ouvido esquerdo, e em vez disso, enviá-la para o circuito processador de informação, deixá-la correr os caminhos necessários para que seja libertada da canga excedente e seja levada a um grau de depuração tal, que o neurónio que lhe foi atribuído, a possa analisar ao pormenor, pela frente e por de trás, por um lado e pelo outro, por cima e por baixo, partindo do princípio que essa informação depurada terá ponta por onde se lhe pegue.
Vezes há e são mais do que as desejadas, em que por mais volta que se lhe dê, nada resulta dessa observação senão o absoluto nada e já não digo o vazio absoluto, porque se sabe hoje que ele está recheado de milhares de coisas, segundo dizem os cientistas mais apegreidides.
Bom, tudo isto será muito bonito, mas o que é que hoje me vai dar corda ao neurónio, perguntarão os leitores? E pergunto eu, mais interessado ainda que os leitores, que haja quem lhes dê corda para não ter que lhes por óleo lubrificante.
Hoje, para ser franco, e mesmo que o não deseje, pois já estou farto de ouvir falar disso, não posso nem consigo deixar de processar na cadeia neuronal, a palavra, o conceito, a prática, o benefício, o malefício, a vergonha, a desvergonha, da corrupção.
Corrupção. Acto ou efeito de corromper, de tornar podre, decompor, apodrecer. Qualquer coisa que corrompe. Que corrompe o que é corruptível ou corruptivo, o que não está bem, em boas condições materiais e funcionais.
A ferrugem corrói o ferro porque este é corrosível e não deseja nem ambiciona ser aço ou comportar-se como aço. É ferro que não se protege, não coloca em si o escudo visível ou invisível do óleo que anule os efeitos dos vários 000 que o atacam.
Corrupção. Quando humana, dita passiva e activa. «É tão corrupto o corrompido, como o que corrompe». E, mais uma vez temos a corrupção a chegar na forma de 0000, agora não de oxigénio, mas de forma numérica, colocados à esquerda dos cifrões.
Ainda mal acabei de escrever a última linha e logo fui assaltado pela dúvida de poder haver, ou não, corrupção na União Europeia, a ser verdade a teoria dos 00000. De facto, se nos Estados Unidos da América ou em Inglaterra, por exemplo, os 0000 aparecem depois dos outros algarismos e estes depois do cifrão e se em Portugal os 0000 se colocavam à esquerda do cifrão para terem valor corruptivo, agora, na União Europeia, não havendo cifrões, onde colocar os 000 corruptores?
Não me parece que a eliminação do cifrão pudesse acabar com a corrupção, razão porque se introduziu a vírgula, entre euros e cêntimos, separando o que corrompe e o que se atira fora por serem pinates. Algarismo, 00000000, virgula, 00 e aí está novamente a corrupção. Ponto.
Mas, há que separar ainda a corrupção inteligente, da corrupção estúpida, do chico esperto em país de atrasados mentais. Se os gnrs não tivessem mostrado sinais exteriores de riqueza teriam sido descobertos?
Mas, diz-se mais – diz-se que, se os ordenados fossem maiores, não haveria corrupção. Será isto verdade ou é apenas um embuste, um doce engano? Quem põe as mãos no cepo em defesa desta afirmação?
Mas, se este princípio não é verdadeiro, significará isto que aceitamos o determinismo, género, é corrupto quem é corrupto, pronto?
E, logo a seguir, vem a comparação com as ovelhas ranhosas das famílias. Vários irmãos na mesma casa, os mesmos pais, as mesmas escolas, a mesma educação e entre os vários irmãos lá está a ovelha negra.
Será que há condições especiais para ser corrupto? A ambição desmedida, a falta de qualidade e aptidão para ser, lutar e vencer? A inveja, a falta de valores, a subjugação total ao deus cifrão?
Mas a ser assim, deveria haver classes sociais, profissões, tendências políticas, visões do mundo, que fossem mais imunes à corrupção activa e passiva, mas o que se vê neste triste mundo, neste cada vez mais desgraçado país, é uma corrupção em crescendo, desenvolvendo-se como cogumelos, envolvendo como um líquen, classes sociais, profissões, políticos, pessoal e quadros responsáveis ou que o deviam ser.
O facilitismo, a vida fácil e prazenteira, a inveja do vizinho e de tudo que lhe pertence, casa, carro, dinheiro, até mulher, são fulminantes, que picados, percutidos pelo corruptor activo, vão explodir causando uma erosão da moral, uma destruição dos princípios, num salve-se quem puder.
Sorrateiramente, as teorias de mercado foram instituindo aquele pequeno líquen das comissões, normais e quase legais, nas compras, o pagamento de favores de pressão lobística, o pagamento de notícias laudatórias ou difamatórias, consoante o interesse do pagante, a flutuação bolsista inflacionada por notícias que de verdadeiras nada tiveram, o pagamento em acções douradas, o pagamento subterrâneo de outro ordenado através de cartões de empresa, a compra pelo valor restante dos automóveis em leasing, um sem número de pequenos e grandes truques que só conduzem à habituação, como a bebida social, como uma droga pesada.
Hoje foi a fotocópia que se vendeu com o fax comprometedor, amanhã será a informação privilegiada, depois de amanhã os passaportes ainda virgens e autênticos que vão servir todos os fins, para a semana um transporte de droga, amanhã noutro local a declaração de IRS mal preenchida, para a semana o prédio que vai a leilão só para aquele que foi informado e para o outro, ou outros, com ele combinados.
E onde eram vales, já são montanhas de actos corruptos, começando a não chegar os off-shores deste mundo para tanta vigarice, tanta corrupção.
Corrupção. O que corrompe o que é corruptível.
E se não fecharem os ouvidos, caros leitores, ouvirão sempre o canto da sereia que, com aquela sua voz maviosa, vos dirá que todo o homem tem um preço.
O mundo está perigoso, como diz Vasco Pulido Valente. Tão perigoso que, qualquer dia, todos começarão a pensar qual será o seu justo preço e a dizer que, pensando melhor, é uma verdade, que ninguém aceita valores morais em pagamento seja do que for.
É a isto que se chama progresso? Que se chama evolução?
Sinto-me cada vez mais um homem de outro tempo.

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