De orgia em orgia foi Leopoldo cavando fundo, fundo, sua destruição. De orgia em orgia foi Leopoldo caindo na garganta funda, funda, da sua decomposição que orgia a orgia foi compondo.
Quem o viu nascer, quem o viu crescer, quem desde o princípio o amou, quem o foi amando pelo tempo fora, ou quem o foi aprendendo a amar, uns e outros, todos juntos, e mesmo aqueles que o não amaram e apenas dele gostaram, ou nem isso, e apenas o conheceram, uns ou outros, todos eles, nos diriam que Leopoldo não tinha nascido para este triste fim, para esta estranha destruição, que de uma forma tão destruída e tão decomposta fez.
De orgia em orgia foi Leopoldo cavando sua sepultura.
E foi Leopoldo quem nela se deitou depois de pouco a pouco a ter cavado. De princípio muito lentamente, e tão apressadamente por fim.
Nem mesmo Beatriz, por um instante que fosse, suspeitou que alguma coisa de grave se estava a passar, antes de lhe ver os olhos assim raiados.
É certo que tinha ficado surpreendida quando começou a ver despontar nele o arredondado da barriga, até aí tábua rija, parede muscular bem exercitada, lisa e recta, contendo perfeitamente tudo que para lá dela devia conter.
Mas não foi nada que lhe retivesse o pensamento muito tempo pois, de uma forma natural, pensou que Leopoldo andava a descurar a sua preparação física e que, queira-se ou não, o tempo vai passando, para ele e para todos, mesmo para aqueles que não deixam sinais tão nítidos, visíveis e duradouros da sua passagem .
Por ela preferia ter um pouco de barriga a ter aqueles cabelos brancos que teimavam em nascer já brancos ou aquelas rugas que anunciavam sulcos mais cavados, amanhã e depois e depois. Assim pensou Beatriz, no repentino momento em que questionou a barriga de Leopoldo.
E se nem Beatriz algum dia o suspeitou verdadeiramente, como o haveriam de suspeitar os outros que para ele sempre olharam com olhos menos atentos que os dela, que sempre e só tinha olhos para ele.
Por isso era Beatriz quem agora mais sofria por sentir que poderia ter feito alguma coisa pela vida de Leopoldo, se tivesse podido ter um olhar ainda mais atento e menos apaixonado.
Mas de que serve a Beatriz o sofrimento em que se encontra? O que é que isso pode valer a Leopoldo, agora que de vez deixou Beatriz e os outros todos, que, de uma forma ou de outra, por ele sentiram alguma coisa ou por ele foram insensivelmente marcados com o punção da sua fala, do seu gesto, do seu pousado olhar?
Para quê essa dor, amigos? Assim teria perguntado Leopoldo se agora os visse assim, se agora a visse assim, a ela, Beatriz. Para quê essa dor, amigos? Para que serve essa dor? A quem aproveita? Lenitivo de consciência?
Pode ser que Beatriz se tenha lembrado neste exacto momento, que era de todo provável que Leopoldo assim reagisse ao espectáculo da sua dor e, como por encanto ou obscuro mistério, Beatriz soltou uma ensoleirada gargalhada, como o são as gargalhadas soltas, límpidas e sonoras.
Quem a ouvisse, se alguém a ouviu, deve ter pensado que a dor por vezes enlouquece mas que isso não seria de esperar da dor de Beatriz pela falta de Leopoldo. Se alguém a ouviu não se sabe, ou fica como não sabido.
O que importa é que Beatriz soltou a tal gargalhada e com ela se libertou de vez daquele sofrimento que lhe marcava os dias desde que Leopoldo desaparecera. E nesse momento sentiu-se extremamente leve e solta, capaz de correr, saltar, flutuar talvez. Sem querer, pensou que muitas vezes se sentira assim quando estava com Leopoldo e ele lhe prestava a atenção que ela sempre dele desejava e que ele nem sempre lhe dava, porque o seu pensamento e a sua atenção saltitavam de uns para os outros, de umas coisas para outras, de um pensamento para outro, a velocidades impossíveis de acompanhar precisamente por aqueles que mais gostariam de o fazer.
E foi daí para a frente que a vida de Beatriz retomou o seu aparentemente normal pulsar. Quem, naquele exacto momento, tivesse encontrado Beatriz nunca suspeitaria que ela tinha acabado de ter uma grande dor. Mas a dor tinha acabado e dela não restava vestígio. Beatriz era novamente Beatriz, com sua boca rasgada, seus olhos de água transparente e azul que faziam pensar em Capri e na sua famosa gruta a todos que alguma vez nela tivessem estado, seu corpo desenvolto e extremamente elegante, seu porte de rainha sem reino, porque de todos os reinos, seus cabelos de ouro de 24 quilates, autênticos, como tudo que de Beatriz saía ou a ela respeitava.
Leopoldo teria gostado de a ver assim. Teria gostado sobretudo de a ver assim depois de a ter visto como ainda há bem pouco estava. Era assim que Leopoldo gostava de a ver, quando ela era a imagem perfeita da autenticidade, da natureza espiritual de seu corpo felinamente material. Quando se olhava para ela, o que se via era a sua indescritível beleza e a sua transparente pureza. Juntas, às vezes agressivamente juntas, tornando-se uma e outra quase insuportáveis, tais os sentimentos que despertavam, assim tão contraditoriamente reais. Por vezes olhava-se para Beatriz e hesitava-se entre pô-la no altar ou jogá-la na cama. Mas nunca ninguém a pôs num sítio ou noutro. Penso que nem Leopoldo, embora todos pensem que sim.
A forma como Leopoldo gostava de Beatriz era tão autêntica, tão contemplativa, tão íntima, que deitar-se com Beatriz era deitar-se consigo próprio. Violar Beatriz seria violar-se a si próprio e possui-la era qualquer coisa de muito diferente daquilo que os outros entendem por possuir. Por isso Leopoldo sempre possuiu Beatriz sem nunca a ter possuído.
Falar de tudo isto é apenas falar, pode até ser necessário, mas não é, nem nunca será, mais do que uma pálida ideia do que era a relação que existia entre Beatriz e Leopoldo ou entre Leopoldo e Beatriz se, por acaso, uma das formas é mais verdadeira que a outra.
E só se fala nisto agora porque mesmo não sendo a verdade total, nem sequer aproximada, é uma visão da relação que se estabeleceu entre estes dois seres e que nos têm vindo a ocupar a atenção desde que deles começámos a falar. E que felizmente nos vão continuar a prender enquanto esta história tiver que contar, enquanto transpirar e pingar sobre cada página gordas gotas do humanismo que Leopoldo e Beatriz sempre protagonizaram. Do amor que, sem se ver, sempre viveram.
Quem o viu nascer, quem o viu crescer, quem desde o princípio o amou, quem o foi amando pelo tempo fora, ou quem o foi aprendendo a amar, uns e outros, todos juntos, e mesmo aqueles que o não amaram e apenas dele gostaram, ou nem isso, e apenas o conheceram, uns ou outros, todos eles, nos diriam que Leopoldo não tinha nascido para este triste fim, para esta estranha destruição, que de uma forma tão destruída e tão decomposta fez.
De orgia em orgia foi Leopoldo cavando sua sepultura.
E foi Leopoldo quem nela se deitou depois de pouco a pouco a ter cavado. De princípio muito lentamente, e tão apressadamente por fim.
Nem mesmo Beatriz, por um instante que fosse, suspeitou que alguma coisa de grave se estava a passar, antes de lhe ver os olhos assim raiados.
É certo que tinha ficado surpreendida quando começou a ver despontar nele o arredondado da barriga, até aí tábua rija, parede muscular bem exercitada, lisa e recta, contendo perfeitamente tudo que para lá dela devia conter.
Mas não foi nada que lhe retivesse o pensamento muito tempo pois, de uma forma natural, pensou que Leopoldo andava a descurar a sua preparação física e que, queira-se ou não, o tempo vai passando, para ele e para todos, mesmo para aqueles que não deixam sinais tão nítidos, visíveis e duradouros da sua passagem .
Por ela preferia ter um pouco de barriga a ter aqueles cabelos brancos que teimavam em nascer já brancos ou aquelas rugas que anunciavam sulcos mais cavados, amanhã e depois e depois. Assim pensou Beatriz, no repentino momento em que questionou a barriga de Leopoldo.
E se nem Beatriz algum dia o suspeitou verdadeiramente, como o haveriam de suspeitar os outros que para ele sempre olharam com olhos menos atentos que os dela, que sempre e só tinha olhos para ele.
Por isso era Beatriz quem agora mais sofria por sentir que poderia ter feito alguma coisa pela vida de Leopoldo, se tivesse podido ter um olhar ainda mais atento e menos apaixonado.
Mas de que serve a Beatriz o sofrimento em que se encontra? O que é que isso pode valer a Leopoldo, agora que de vez deixou Beatriz e os outros todos, que, de uma forma ou de outra, por ele sentiram alguma coisa ou por ele foram insensivelmente marcados com o punção da sua fala, do seu gesto, do seu pousado olhar?
Para quê essa dor, amigos? Assim teria perguntado Leopoldo se agora os visse assim, se agora a visse assim, a ela, Beatriz. Para quê essa dor, amigos? Para que serve essa dor? A quem aproveita? Lenitivo de consciência?
Pode ser que Beatriz se tenha lembrado neste exacto momento, que era de todo provável que Leopoldo assim reagisse ao espectáculo da sua dor e, como por encanto ou obscuro mistério, Beatriz soltou uma ensoleirada gargalhada, como o são as gargalhadas soltas, límpidas e sonoras.
Quem a ouvisse, se alguém a ouviu, deve ter pensado que a dor por vezes enlouquece mas que isso não seria de esperar da dor de Beatriz pela falta de Leopoldo. Se alguém a ouviu não se sabe, ou fica como não sabido.
O que importa é que Beatriz soltou a tal gargalhada e com ela se libertou de vez daquele sofrimento que lhe marcava os dias desde que Leopoldo desaparecera. E nesse momento sentiu-se extremamente leve e solta, capaz de correr, saltar, flutuar talvez. Sem querer, pensou que muitas vezes se sentira assim quando estava com Leopoldo e ele lhe prestava a atenção que ela sempre dele desejava e que ele nem sempre lhe dava, porque o seu pensamento e a sua atenção saltitavam de uns para os outros, de umas coisas para outras, de um pensamento para outro, a velocidades impossíveis de acompanhar precisamente por aqueles que mais gostariam de o fazer.
E foi daí para a frente que a vida de Beatriz retomou o seu aparentemente normal pulsar. Quem, naquele exacto momento, tivesse encontrado Beatriz nunca suspeitaria que ela tinha acabado de ter uma grande dor. Mas a dor tinha acabado e dela não restava vestígio. Beatriz era novamente Beatriz, com sua boca rasgada, seus olhos de água transparente e azul que faziam pensar em Capri e na sua famosa gruta a todos que alguma vez nela tivessem estado, seu corpo desenvolto e extremamente elegante, seu porte de rainha sem reino, porque de todos os reinos, seus cabelos de ouro de 24 quilates, autênticos, como tudo que de Beatriz saía ou a ela respeitava.
Leopoldo teria gostado de a ver assim. Teria gostado sobretudo de a ver assim depois de a ter visto como ainda há bem pouco estava. Era assim que Leopoldo gostava de a ver, quando ela era a imagem perfeita da autenticidade, da natureza espiritual de seu corpo felinamente material. Quando se olhava para ela, o que se via era a sua indescritível beleza e a sua transparente pureza. Juntas, às vezes agressivamente juntas, tornando-se uma e outra quase insuportáveis, tais os sentimentos que despertavam, assim tão contraditoriamente reais. Por vezes olhava-se para Beatriz e hesitava-se entre pô-la no altar ou jogá-la na cama. Mas nunca ninguém a pôs num sítio ou noutro. Penso que nem Leopoldo, embora todos pensem que sim.
A forma como Leopoldo gostava de Beatriz era tão autêntica, tão contemplativa, tão íntima, que deitar-se com Beatriz era deitar-se consigo próprio. Violar Beatriz seria violar-se a si próprio e possui-la era qualquer coisa de muito diferente daquilo que os outros entendem por possuir. Por isso Leopoldo sempre possuiu Beatriz sem nunca a ter possuído.
Falar de tudo isto é apenas falar, pode até ser necessário, mas não é, nem nunca será, mais do que uma pálida ideia do que era a relação que existia entre Beatriz e Leopoldo ou entre Leopoldo e Beatriz se, por acaso, uma das formas é mais verdadeira que a outra.
E só se fala nisto agora porque mesmo não sendo a verdade total, nem sequer aproximada, é uma visão da relação que se estabeleceu entre estes dois seres e que nos têm vindo a ocupar a atenção desde que deles começámos a falar. E que felizmente nos vão continuar a prender enquanto esta história tiver que contar, enquanto transpirar e pingar sobre cada página gordas gotas do humanismo que Leopoldo e Beatriz sempre protagonizaram. Do amor que, sem se ver, sempre viveram.
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