Se eu vos disser que não era permitido estarem mais do que três pessoas, três amigos, a conversarem num passeio público, por exemplo, o que é que vocês serão levados a pensar? Ou que estou a mentir ou que estou a inventar. De facto, nenhuma outra razão vocês encontrarão.
Se eu vos disser que havia liceus masculinos e liceus femininos e que não era possível os rapazes entrarem e nem sequer se aproximarem de um liceu feminino, o que é que vocês serão levados a pensar? Que eu estou a mentir ou que estou a inventar, evidentemente.
Se eu vos disser que, mesmo depois de aparecerem os liceus mistos e apenas em terras onde seria descabido haver dois por não haver estudantes em número suficiente, continuava a ser proibido haver uma conversa franca entre rapazes e raparigas, que os recreios eram separados, as aulas de ginástica também e que era totalmente proibido que os rapazes dirigissem a palavra às raparigas num raio de 100 metros à volta do liceu, depois de saírem das aulas, o que é que vocês são levados a pensar? Que eu estou a mentir ou que estou a inventar, evidentemente.
Se eu vos disser que depois de terminarem as aulas, as raparigas iam que nem um tiro para as suas casas, mesmo as universitárias e que os rapazes também iam, embora um pouco mais devagar, o que é que vocês são levados a pensar? Que eu vos estou a mentir ou a inventar, evidentemente.
Se eu vos disser que fumar era só às escondidas e que para usar um isqueiro, que os mais afortunados tivessem, era necessário ter licença para o seu uso, paga todos os anos às Finanças, o que é que vocês são levados a pensar? Evidentemente, que vos estou a mentir ou a inventar.
Se eu vos disser que os livros eram vigiados e alguns proibidos e que os jornais todos os dias iam previamente à comissão de censura e vinham cheios de artigos censurados e proibidos pelo lápis azul dos censores, o que é que vocês são levados a pensar? Em coro, todos, que eu vos estou a mentir ou a inventar, evidentemente.
Se eu vos disser que só os homens, os chefes de família, podiam votar e mesmo assim em eleições controladas e fraudulentas, em que se fosse preciso para ganhar se chegavam a descarregar como tendo votado, milhares de eleitores já mortos, o que é que vocês são levados a pensar? Mais uma vez, em coro, que eu vos estou a mentir ou a inventar, evidentemente.
E agora, porque os exemplos me parecem já suficientes para vocês terem uma pálida ideia do que eram esses tempos, chegou a vez de eu vos perguntar – em nome de quê, que razões terei eu, para aqui, tão descaradamente vos vir mentir? E, antecipando-me a que um de vós, aí dos vossos lugares, me grite – porque é um mentiroso, eu garanto sobre a Bíblia que não tenho, que não sou mentiroso, nem vos menti e que tudo que vos disse é totalmente verdade. E se não vos chegar esta minha afirmação, perguntem aos vossos pais, evidentemente, se acreditam neles. E acabo de dizer, sem querer, outra coisa que naquele tempo era impossível dizer, era impossível pensar. Duvidar dos pais? Onde é que isso alguma vez se viu?
Os exemplos estão dados, a cena está descrita e criada. Passemos à acção. Tudo isto se passava antes de 1974, mesmo depois de ter acontecido o Maio de 68, de haver o festival de Woodstock, do aparecimento e consumo do LSD e outros alucinogéneos e de começarem em Coimbra e em Lisboa as manifestações de estudantes, protestando contra a política de educação, contra as prisões arbitrárias de estudantes, contra as cargas da polícia de choque sobre os estudantes concentrados na cidade universitária de Lisboa, contra o assassinato pela PIDE de um estudante de Economia, Ribeiro Sanches, dentro da própria Faculdade, durante uma reunião de alunos.
Tudo isto se passava durante a ditadura fascista de Salazar e da primavera marcelista, da evolução na continuidade de Marcelo Caetano. Tudo isto se passava naquele longo período de obscurantismo, em que o medo era dominante, a polícia política era soberana e tinha um longo braço que a todos chegava, ajudada por um bando de milhares de bufos, os chamados informadores, que sem qualquer controlo e a maior parte das vezes sem qualquer verdade, denunciavam à polícia política o vizinho de que não gostavam, o conhecido que lhes fizera qualquer agravo e muitas vezes os próprios familiares, a troco de uns míseros escudos ou em nome da ideologia em que diziam acreditar, mas que, na verdade, os protegia.
Entretanto começara a guerra colonial em 1961, primeiro em Angola, logo depois em Moçambique e na Guiné. Para ela começaram a partir os oficiais formados nas Academias Militares e até aí sustentáculos do regime e do governo. Mas com eles começaram a partir também milhares de jovens, enquadrados por jovens oficiais milicianos, muitos dos quais conheciam bem no corpo os efeitos das cargas da polícia de choque e muitos deles o terror das prisões políticas. E é muito gratificante estar diante de uma plateia de jovens e estudantes e poder dizer-lhes como foi importante a acção de todos aqueles estudantes que mais formados cultural e politicamente falando e desejosos de transformações sociais e de liberdade, com a sua palavra e acção foram lançando as sementes que permitiram a transformação ideológica dos quadros militares, até aí avessos a politização e pouco dados a pensar sobre a injustiça, as desigualdades sociais e a falta de liberdade.
Parece certo que o Movimento dos Capitães começou por razões corporativas. Os oficiais dos quadros permanentes sentiam-se descontentes, alguns deles com mais de cinco comissões na frente de combate, sem regalias correspondentes e com os olhos mais abertos. Mas também parece certo que, à medida que as reuniões preparatórias se sucediam, se foi tornando evidente que o movimento começava a ter características políticas e aquilo porque passaram a lutar já pouco tinha de corporativo e os valores fundamentais porque lutavam se tornavam cada dia mais evidentes. O Movimento das Forças Armadas passou a ter como finalidade recuperar a liberdade perdida e instaurar a democracia para que todos pudessem ter voz e manifestar as suas opiniões. Foram eles os principais responsáveis por essa grande conquista da Revolução de Abril e que vos permite hoje, a vós, estar e conviver em liberdade, criticar tudo e todos e, assim o espero, aceitar as críticas que vos façam. Mas igualmente responsáveis foram os antigos estudantes integrados nas fileiras como milicianos, que com a sua cultura e formação muito contribuíram para tornar tudo isto possível.
É por isso que ser estudante é importante. Estudar implica aprender, depois de compreender. E só quem compreende e aprende pode ensinar e ajudar os outros que não tiveram essa possibilidade ou apetência. Porque estudam os estudantes? Para ser doutores, advogados ou engenheiros é manifestamente pouco. Para aprofundar os conhecimentos, transmiti-los, pensar nos problemas colectivos e lutar por um mundo melhor, é já bastante mais.
Vinha aqui para vos falar do 25 de Abril e dos seus valores. Mas, penso que o não vou fazer. Do que foi o 25 de Abril, de quem o fez e de como se fez, já vocês o saberão ou já alguém vos terá falado. Dos valores, seguramente que também. Por isso, me dispenso de o fazer eu. Vinha também para vos falar de uma figura ímpar do 25 de Abril que foi Salgueiro Maia e da importância que Santarém teve naquele movimento. Mas, por acrescidas razões, todos saberão quem ele foi e o que fez. Contudo, não deixarei de vos chamar a atenção para o facto de ele ter sido um puro, na verdadeira acepção da palavra. E é da História, que os puros são sempre sacrificados ou se sacrificam. Foi o que ele fez, tendo lutado pela justiça, pela igualdade e pela fraternidade e por isso se viu objecto de perseguições e injustiças que não merecia e pelas quais pôs em risco a vida e a carreira. Não podia deixar de vos chamar a atenção para isto. Porque as nossas acções e a concretização das nossas ideias e dos nossos ideais não deve passar nunca pelas compensações e benesses que normalmente acontecem, mas exclusivamente pela alegria de mudar o mundo e o fazer melhor, não só para nós, mas para todos.
Penso que não vos vou dizer mais nada. Mas coloco-me inteiramente ao vosso dispor para todas as perguntas que me queiram fazer e a que eu possa e saiba responder. Mais uma vez afirmo que só se poderá responder se se souber e só se saberá, se se pensar e se se estudar. Saiba eu responder-vos e queiram vocês perguntar. O tempo e a palavra, a partir de agora, são vossos.
Se eu vos disser que havia liceus masculinos e liceus femininos e que não era possível os rapazes entrarem e nem sequer se aproximarem de um liceu feminino, o que é que vocês serão levados a pensar? Que eu estou a mentir ou que estou a inventar, evidentemente.
Se eu vos disser que, mesmo depois de aparecerem os liceus mistos e apenas em terras onde seria descabido haver dois por não haver estudantes em número suficiente, continuava a ser proibido haver uma conversa franca entre rapazes e raparigas, que os recreios eram separados, as aulas de ginástica também e que era totalmente proibido que os rapazes dirigissem a palavra às raparigas num raio de 100 metros à volta do liceu, depois de saírem das aulas, o que é que vocês são levados a pensar? Que eu estou a mentir ou que estou a inventar, evidentemente.
Se eu vos disser que depois de terminarem as aulas, as raparigas iam que nem um tiro para as suas casas, mesmo as universitárias e que os rapazes também iam, embora um pouco mais devagar, o que é que vocês são levados a pensar? Que eu vos estou a mentir ou a inventar, evidentemente.
Se eu vos disser que fumar era só às escondidas e que para usar um isqueiro, que os mais afortunados tivessem, era necessário ter licença para o seu uso, paga todos os anos às Finanças, o que é que vocês são levados a pensar? Evidentemente, que vos estou a mentir ou a inventar.
Se eu vos disser que os livros eram vigiados e alguns proibidos e que os jornais todos os dias iam previamente à comissão de censura e vinham cheios de artigos censurados e proibidos pelo lápis azul dos censores, o que é que vocês são levados a pensar? Em coro, todos, que eu vos estou a mentir ou a inventar, evidentemente.
Se eu vos disser que só os homens, os chefes de família, podiam votar e mesmo assim em eleições controladas e fraudulentas, em que se fosse preciso para ganhar se chegavam a descarregar como tendo votado, milhares de eleitores já mortos, o que é que vocês são levados a pensar? Mais uma vez, em coro, que eu vos estou a mentir ou a inventar, evidentemente.
E agora, porque os exemplos me parecem já suficientes para vocês terem uma pálida ideia do que eram esses tempos, chegou a vez de eu vos perguntar – em nome de quê, que razões terei eu, para aqui, tão descaradamente vos vir mentir? E, antecipando-me a que um de vós, aí dos vossos lugares, me grite – porque é um mentiroso, eu garanto sobre a Bíblia que não tenho, que não sou mentiroso, nem vos menti e que tudo que vos disse é totalmente verdade. E se não vos chegar esta minha afirmação, perguntem aos vossos pais, evidentemente, se acreditam neles. E acabo de dizer, sem querer, outra coisa que naquele tempo era impossível dizer, era impossível pensar. Duvidar dos pais? Onde é que isso alguma vez se viu?
Os exemplos estão dados, a cena está descrita e criada. Passemos à acção. Tudo isto se passava antes de 1974, mesmo depois de ter acontecido o Maio de 68, de haver o festival de Woodstock, do aparecimento e consumo do LSD e outros alucinogéneos e de começarem em Coimbra e em Lisboa as manifestações de estudantes, protestando contra a política de educação, contra as prisões arbitrárias de estudantes, contra as cargas da polícia de choque sobre os estudantes concentrados na cidade universitária de Lisboa, contra o assassinato pela PIDE de um estudante de Economia, Ribeiro Sanches, dentro da própria Faculdade, durante uma reunião de alunos.
Tudo isto se passava durante a ditadura fascista de Salazar e da primavera marcelista, da evolução na continuidade de Marcelo Caetano. Tudo isto se passava naquele longo período de obscurantismo, em que o medo era dominante, a polícia política era soberana e tinha um longo braço que a todos chegava, ajudada por um bando de milhares de bufos, os chamados informadores, que sem qualquer controlo e a maior parte das vezes sem qualquer verdade, denunciavam à polícia política o vizinho de que não gostavam, o conhecido que lhes fizera qualquer agravo e muitas vezes os próprios familiares, a troco de uns míseros escudos ou em nome da ideologia em que diziam acreditar, mas que, na verdade, os protegia.
Entretanto começara a guerra colonial em 1961, primeiro em Angola, logo depois em Moçambique e na Guiné. Para ela começaram a partir os oficiais formados nas Academias Militares e até aí sustentáculos do regime e do governo. Mas com eles começaram a partir também milhares de jovens, enquadrados por jovens oficiais milicianos, muitos dos quais conheciam bem no corpo os efeitos das cargas da polícia de choque e muitos deles o terror das prisões políticas. E é muito gratificante estar diante de uma plateia de jovens e estudantes e poder dizer-lhes como foi importante a acção de todos aqueles estudantes que mais formados cultural e politicamente falando e desejosos de transformações sociais e de liberdade, com a sua palavra e acção foram lançando as sementes que permitiram a transformação ideológica dos quadros militares, até aí avessos a politização e pouco dados a pensar sobre a injustiça, as desigualdades sociais e a falta de liberdade.
Parece certo que o Movimento dos Capitães começou por razões corporativas. Os oficiais dos quadros permanentes sentiam-se descontentes, alguns deles com mais de cinco comissões na frente de combate, sem regalias correspondentes e com os olhos mais abertos. Mas também parece certo que, à medida que as reuniões preparatórias se sucediam, se foi tornando evidente que o movimento começava a ter características políticas e aquilo porque passaram a lutar já pouco tinha de corporativo e os valores fundamentais porque lutavam se tornavam cada dia mais evidentes. O Movimento das Forças Armadas passou a ter como finalidade recuperar a liberdade perdida e instaurar a democracia para que todos pudessem ter voz e manifestar as suas opiniões. Foram eles os principais responsáveis por essa grande conquista da Revolução de Abril e que vos permite hoje, a vós, estar e conviver em liberdade, criticar tudo e todos e, assim o espero, aceitar as críticas que vos façam. Mas igualmente responsáveis foram os antigos estudantes integrados nas fileiras como milicianos, que com a sua cultura e formação muito contribuíram para tornar tudo isto possível.
É por isso que ser estudante é importante. Estudar implica aprender, depois de compreender. E só quem compreende e aprende pode ensinar e ajudar os outros que não tiveram essa possibilidade ou apetência. Porque estudam os estudantes? Para ser doutores, advogados ou engenheiros é manifestamente pouco. Para aprofundar os conhecimentos, transmiti-los, pensar nos problemas colectivos e lutar por um mundo melhor, é já bastante mais.
Vinha aqui para vos falar do 25 de Abril e dos seus valores. Mas, penso que o não vou fazer. Do que foi o 25 de Abril, de quem o fez e de como se fez, já vocês o saberão ou já alguém vos terá falado. Dos valores, seguramente que também. Por isso, me dispenso de o fazer eu. Vinha também para vos falar de uma figura ímpar do 25 de Abril que foi Salgueiro Maia e da importância que Santarém teve naquele movimento. Mas, por acrescidas razões, todos saberão quem ele foi e o que fez. Contudo, não deixarei de vos chamar a atenção para o facto de ele ter sido um puro, na verdadeira acepção da palavra. E é da História, que os puros são sempre sacrificados ou se sacrificam. Foi o que ele fez, tendo lutado pela justiça, pela igualdade e pela fraternidade e por isso se viu objecto de perseguições e injustiças que não merecia e pelas quais pôs em risco a vida e a carreira. Não podia deixar de vos chamar a atenção para isto. Porque as nossas acções e a concretização das nossas ideias e dos nossos ideais não deve passar nunca pelas compensações e benesses que normalmente acontecem, mas exclusivamente pela alegria de mudar o mundo e o fazer melhor, não só para nós, mas para todos.
Penso que não vos vou dizer mais nada. Mas coloco-me inteiramente ao vosso dispor para todas as perguntas que me queiram fazer e a que eu possa e saiba responder. Mais uma vez afirmo que só se poderá responder se se souber e só se saberá, se se pensar e se se estudar. Saiba eu responder-vos e queiram vocês perguntar. O tempo e a palavra, a partir de agora, são vossos.
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