Vinha eu bem repimpado, como um lorde, no assento de trás e no lado direito do Mercedes preto oficial, que o motorista beirão competentemente conduzia, circular de Benfica adiante, chuva miudinha e chata sempre caindo, a pensar ou não pensar em coisa nenhuma, quando o semáforo acendeu vermelho. Le feu rouge, tu sais?
O Breia beirão, que conduz bem e trava igual, parou suavemente no vermelho proibitivo, cumprindo com as regras, porque sabe bem que só aqueles que se sentam no banco de trás as podem transgredir sem grandes consequências, ou talvez mesmo, sem nenhumas.
Era um daqueles semáforos que podem ser accionados pelos peões, quando pretendem conseguir a aventura fabulosa que é atravessar uma via de grande tráfego. E foi então que tudo aconteceu.
Duas mulheres de condição modesta, uma delas de saco de plástico na mão e chinelos de lã nos pés, cabeça bem descoberta, a outra com uma criança ao colo e um pequeno guarda chuva para abrigar as duas, ou só o bébé, e dessa maneira talvez nem uma nem outra, pretendiam atravessar a estrada.
Tinham sido elas a accionar o semáforo. Quanto tempo terão esperado pelo cumprimento da sua ordem, ou do seu pedido, não sei. Só sei que chovia e elas ali estiveram paradas à espera da sua sorte, da sua vez, como sempre.
A estrada em que o Mercedes circulava era negra como ele. Negra, lisa, suave, com um bom tapete asfáltico.
O passeio onde as duas mulheres aguardavam era de terra lamacenta, descuidado, rebordado com boa pedra calcárea de Lisboa, posta ali para alindar a estrada e para marcar a diferença.
Era de terra lamacenta este largo passeio, agora transformado em lago, sem tamanho para constar dum qualquer mapa, mas mais largo que qualquer passada, mesmo de americano, daqueles que encestam sem saltar. Era um lago. Não era um charco.
E eu pensei em como iriam as mulheres conseguir atravessá-lo, com seus chinelos de lã, bem sei que já molhados.
E foi tão fácil, tão fácil, que nem dá para explicar. Só dá para corar e pensar. Não no lago. Mas no charco. Da vida em que nos movemos, da sapiência que arrotamos, da empáfia parva que transpiramos e transportamos.
E foi tão fácil, tão fácil. Apenas dois gestos, dois actos de cultura, dois simples gestos que resolveram a situação.
A mulher que não tinha o filho ao colo, apenas se debruçou, apanhou duas grandes pedras e atirou-as para dentro do lago, distantes um passo uma da outra.
E foi tão fácil, tão fácil, ver as duas mulheres atravessarem, pé numa pedra, pé na outra, o seguinte já no rebordo e, logo logo, o conforto do asfalto.
Não sei quanto tempo o semáforo dá o poder ao peão. Não sei se do outro lado da estrada, novo lago as esperaria. Só sei, isso sei, que demora o tempo suficiente para eu ter aprendido esta lição e do alto da minha erudição, me recordar de António Gedeão e do seu poema a Galileo Galilei.
E dizer, adaptando,
«Eu queria agradecer-vos ò mulheres que hoje vi, a inteligência das coisas que me destes....
..... Por isso eram vossos olhos misericordiosos, por isso era vosso coração cheio de piedade, pelos homens que não precisam de sofrer....
.....Por isso estoicamente, mansamente resistis a todas as torturas, a todas as angústias, a todos os contratempos, enquanto nós, do alto inacessível das nossas alturas, vamos caindo, caindo, caindo, caindo sempre e sempre, ininterruptamente, na razão directa da nossa estupidez.... »
O Breia beirão, que conduz bem e trava igual, parou suavemente no vermelho proibitivo, cumprindo com as regras, porque sabe bem que só aqueles que se sentam no banco de trás as podem transgredir sem grandes consequências, ou talvez mesmo, sem nenhumas.
Era um daqueles semáforos que podem ser accionados pelos peões, quando pretendem conseguir a aventura fabulosa que é atravessar uma via de grande tráfego. E foi então que tudo aconteceu.
Duas mulheres de condição modesta, uma delas de saco de plástico na mão e chinelos de lã nos pés, cabeça bem descoberta, a outra com uma criança ao colo e um pequeno guarda chuva para abrigar as duas, ou só o bébé, e dessa maneira talvez nem uma nem outra, pretendiam atravessar a estrada.
Tinham sido elas a accionar o semáforo. Quanto tempo terão esperado pelo cumprimento da sua ordem, ou do seu pedido, não sei. Só sei que chovia e elas ali estiveram paradas à espera da sua sorte, da sua vez, como sempre.
A estrada em que o Mercedes circulava era negra como ele. Negra, lisa, suave, com um bom tapete asfáltico.
O passeio onde as duas mulheres aguardavam era de terra lamacenta, descuidado, rebordado com boa pedra calcárea de Lisboa, posta ali para alindar a estrada e para marcar a diferença.
Era de terra lamacenta este largo passeio, agora transformado em lago, sem tamanho para constar dum qualquer mapa, mas mais largo que qualquer passada, mesmo de americano, daqueles que encestam sem saltar. Era um lago. Não era um charco.
E eu pensei em como iriam as mulheres conseguir atravessá-lo, com seus chinelos de lã, bem sei que já molhados.
E foi tão fácil, tão fácil, que nem dá para explicar. Só dá para corar e pensar. Não no lago. Mas no charco. Da vida em que nos movemos, da sapiência que arrotamos, da empáfia parva que transpiramos e transportamos.
E foi tão fácil, tão fácil. Apenas dois gestos, dois actos de cultura, dois simples gestos que resolveram a situação.
A mulher que não tinha o filho ao colo, apenas se debruçou, apanhou duas grandes pedras e atirou-as para dentro do lago, distantes um passo uma da outra.
E foi tão fácil, tão fácil, ver as duas mulheres atravessarem, pé numa pedra, pé na outra, o seguinte já no rebordo e, logo logo, o conforto do asfalto.
Não sei quanto tempo o semáforo dá o poder ao peão. Não sei se do outro lado da estrada, novo lago as esperaria. Só sei, isso sei, que demora o tempo suficiente para eu ter aprendido esta lição e do alto da minha erudição, me recordar de António Gedeão e do seu poema a Galileo Galilei.
E dizer, adaptando,
«Eu queria agradecer-vos ò mulheres que hoje vi, a inteligência das coisas que me destes....
..... Por isso eram vossos olhos misericordiosos, por isso era vosso coração cheio de piedade, pelos homens que não precisam de sofrer....
.....Por isso estoicamente, mansamente resistis a todas as torturas, a todas as angústias, a todos os contratempos, enquanto nós, do alto inacessível das nossas alturas, vamos caindo, caindo, caindo, caindo sempre e sempre, ininterruptamente, na razão directa da nossa estupidez.... »
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