terça-feira, novembro 01, 2005

A confiança e a esperança, à procura uma da outra, com um narrador à mistura

Há dias, horas, meses ou anos, em que, de um momento para o outro, se modifica de uma forma bem evidente a nossa forma de pensar, toda a acção do pensamento.
Desde o modo de o usar, à vontade de o fazer, sem que para isso haja uma razão aparente.
Hoje sinto-me num desses dias, ou numa hora dessas, no início de um mês ou de um ano desses, ainda o não sei.
Tendo prometido enviar hoje esta crónica, e porque cumpro sempre a minha palavra, sentei-me para lhe dar início, meio e fim. Foi então que reparei na evidência com que iniciei este texto.
Foi com mágoa que verifiquei que não só não tinha qualquer ideia ou tema sobre que escrever, como não tinha vontade de o fazer e muito menos capacidade de dar forma às pobres e poucas palavras que ainda atravessavam o que restava do meu pensamento.
Sinto a cabeça como um campo de trigo acabado de ceifar, em que todo o trigo se foi e só o joio restou.
Como amassar então o pão desta crónica? Que facto ocorreu que justifique dar corda ao neurónio já de si tão cansado, tão pouco oleado e tão desmotivado?
Mesmo que me force a fazer o que neste momento menos quero – pensar – o que é que encontro para além de um Portugal de auto-estima perdida, um Mundo que não sabe bem para onde caminha, uma ONU à beira da desagregação, uma NATO ferida gravemente, uma Europa com mais estrelas e cada vez menos brilho?
De que falar então? Da confiança perdida? Mas não será isso um repisar o pisado, um amassar de uva seca? De que falar, então? Da esperança? Mas quem a tem e onde está ela?
Foi então que ouvi uma voz dentro de mim, dizendo – e porque não falares da confiança e da esperança?
E, sinceramente, achei que servia como tema. À falta de melhor, evidentemente. Que outra coisa podia eu fazer?
Se eu me sinto assim, tão desamparado, tão escandalosamente ausente e vazio, não posso deixar de pensar, mesmo que o faça contra vontade, que a auto-estima individual de cada português está em queda ou em perda e que é exactamente a soma destes milhões de perdas que fazem de Portugal um cadáver adiado.

Fala a confiança (melhor, a perda dela) – Se bem o pensaste, melhor o disseste. Só pode haver confiança enquanto sentimento colectivo. Quando um acredita no outro e o outro no outro e por aí fora, numa sequência de verdade ou presunção dela.
Fala agora a esperança – Mesmo na queda mais profunda, na descida ao maior abismo, na tragédia mais dramática, há direito à esperança.
Fala o cronista – Há direito à esperança? A esperança é um direito?
Responde a esperança – Todos temos o direito de ter esperança, mesmo que tenha que ser cada um de nós a construí-la.
O cronista – Queres dizer, ter fé?
A esperança – Não. Quero dizer ter esperança.
Cronista – Como?
Entra a confiança – Tudo isso é possível, sim. Mas apenas quando eu existo. Quando cada um dos seres tem confiança em alguma coisa, ou se quiseres, tem fé nalguma coisa. Mas para isso, é necessário ter valores. Valores de referência. E eu própria me pergunto – onde estão eles?
Cronista – Era exactamente a isso que eu me referia. Como posso eu ter esperança se os valores se perderam?
A esperança – Nem que seja de uma forma cega, nunca me percas, cronista. Sem mim não vais a nenhum lado. Comigo podes ajudar a refazer o equilíbrio do mundo. Podes ajudar a recuperar os valores, a fazer com que eles voltem a existir, mesmo que sejam diferentes dos que antes conhecias.
Cronista – Pedes-me que seja cego para chegar à luz?
A confiança – Querem de ti utopia, ó pragmático cronista.
A esperança – Não é utopia que peço. É realidade.
Cronista – Não quero utopia, quero verdade. Sonhos, sim. Deixem-me com eles, mas também com a realidade de que se faz meu dia a dia.

Mas não vejo sinais, não vejo luz, não vejo terra para assentar meus instáveis pés.
Quem me dá sinais de que eu possa vir a ter esperança, de que eu possa voltar a acreditar que a verdade, o bem e a beleza voltarão a ser valores, voltarão a ser reis, cobertos de pérolas de chuva em países onde não chove, como cantavam Aznavour e Brel?
E tal como eles, eu murmuro – por favor não me deixem. Confiança, esperança, vida.

Senti então meus neurónios felizes, dando-se corda, começando a ter esperança, começando a confiar nas suas possibilidades.
Telefonei a amigos. Perguntei. Inquiri. Li jornais, ouvi noticiários, escutei pensadores. Sempre à procura de sinais que me dessem esperança de que a confiança vinha a caminho.
Mas os jornais, os noticiários, as manchetes, os comentários dos analistas, continuavam a apontar não para a esperança, mas para a falta dela.
Deixo-me novamente arrastar por esta onda cheia de tragédias e fim, ou arranjo maneira de alimentar a minha pequeníssima esperança nascente?
Não hesitei. Optei por esta segunda hipótese. Pareceu-me então ouvir novamente a voz da confiança, dizendo-me – querem de ti utopia, ó pragmático cronista!
Será. Será utopia. Mas, vou por aqui. Juntarei à minha pequena esperança, a de todos que eu encontrar que ainda tenham alguma. E hoje, um, amanhã dez, qualquer dia mil, tudo faremos para restaurar a confiança perdida.

Não é que escrever isto já me dá confiança?

Sim, tens razão, amigo. Talvez de mais.

Concordo!

1 comentário:

MGomes disse...

Excelente. Um hino à esperança traduzido na escrita e na comunicação.
Hoje estou mais feliz, porque encontrei este porto de vida onde o desânimo nunca pode acostar.