sexta-feira, novembro 25, 2005

o ensino da cirurgia ao longo dos tempos. a propósito da criação das régias escolas de cirurgia de lisboa e do porto

Desde que se pratica a arte de curar, existe uma clara disparidade entre o exercício da medicina e o exercício da cirurgia. Porquê, perguntarão? Por uma razão ou um punhado delas fáceis de explicar.
Durante séculos os conhecimentos médicos eram extremamente rudimentares e eram passados de boca a boca, portanto duma forma não muito diferente do que se passava com os actos cirúrgicos que também eram passados dessa forma.
Com o aparecimento das universidades, o ensino da medicina passou a ter alguma qualidade. Só que nas universidades apenas se ensinava matéria médica e o ensino da cirurgia continuava a ser feito por pessoas incultas, que nem sabiam ler nem escrever, mas tinham habilidade para usar o bisturi em alguns actos cirúrgicos. Os médicos consideravam indigno o exercício da cirurgia.
E séculos e séculos se passaram sem que esta situação fosse alterada. Em Portugal a primeira tentativa que se fez, não para equiparar médicos e cirurgiões, mas para dar a estes mais formação, foi a criação do Hospital de Todos os Santos, que resultou da junção dos mais de cinquenta hospitais que havia em Lisboa, num só construído de raiz.
Este hospital foi construído de 1492 a 1501, no local do Rossio, onde hoje é a Praça da Figueira, junto ao Convento de São Domingos. Tinha uma frontaria lindíssima de que sobressaía a sua igreja e escadaria. Tinha uma forma de cruz, em que a igreja era um dos braços e os outros três eram as três enfermarias que tinha – a de São Vicente para os febricitantes, a de São Cosme para os feridos e a de Santa Clara para as mulheres. Cada uma delas tinha anexo um claustro com uma fonte no seu centro. Havia ainda uma outra divisão que era a casa dos enjeitados.
Inicialmente tinha a capacidade de 103 camas, que logo vieram a mostrar-se insuficientes, o que levou a que começassem a deitar dois doentes em cada cama. Por volta de 1551 acrescentaram uma enfermaria para sifilíticos e uma outra na cerca que servia apenas para internar os frades de São Francisco.
Continuava a ter uma capacidade insuficiente; por volta de 1601 tinha 324 doentes internados e em 1620 tinha 600, tendo chegado mesmo a ter 700 doentes, exactamente no dia em que foi destruído pelo terramoto de 1755. Quando começou a funcionar dispunha de dois cirurgiões e de um médico, mas em 1564 já tinha 3 cirurgiões e dois médicos.
Por alvará de 20 de Novembro de 1556 foi criada uma aula de cirurgia e anatomia, iniciando-se assim uma verdadeira escola de cirurgia que funcionou até ao século XIX. Para o funcionamento desta aula recorreu-se a estrangeiros, tal como se tinha feito em relação aos médicos, de que destaco Dias de Ysla.
Pelo ensino da cirurgia passaram Afonso Rodrigues de Guevara e António de Monravá y Roca, que viria a ser despedido por incompetência e que deve ter sido o primeiro a criar uma universidade privada em Portugal – A Academia das quatro ciências – medicina, anatomia, cirurgia e física, também chamada Academia dos Ocultos. Ao longo dos tempos destacaram-se António da Cruz e o seu livro Recopilação, e Manuel Constâncio, este já discípulo de Dufau, que se seguiu a Santucci.
O primeiro problema com este hospital viria a ter lugar em 1750, por causa de um grande incêndio que o destruiu quase por completo, estando internados 740 doentes e 5 anos depois foi totalmente destruído pelo terramoto de 1755.
Os doentes foram instalados em cabanas armadas no Rossio e nas cocheiras do Conde de Castelo Melhor e depois no palácio de Antão de Almada.
Só 4 anos depois, expulsos os jesuítas em 1759, foi o seu convento destinado a hospital a que deram o nome de São José em homenagem ao rei. Os doentes só foram transferidos em Abril de 1760. Iniciava-se então uma nova fase na vida hospitalar de Lisboa e na formação dos cirurgiões portugueses.
Pode dizer-se que a escola de cirurgia do hospital de S. José representou a grande escola formadora de cirurgiões até ao primeiro quartel do século XIX e mesmo até meados do século XX, se tivermos em conta que a Régia Escola de Cirurgia que viria a ser criada em 1825 ficou aqui instalada.
Não está em causa saber-se ou dizer-se que aquilo que aqui se ensinava neste hospital de S. José era bom ou mau, moderno ou antiquado. A única coisa que importa dizer é que este hospital representava o único local do país onde verdadeiramente se ensinava a cirurgia, pese embora outros haver que se iam formando por todo o país, desde que o Cirurgião Mor ou o Físico Mor os aprovassem em exame. Sabe-se que estes exames eram na maioria dos casos autênticas burlas, havendo aprovações em troca de dinheiro dado ao examinador ou a outros cirurgiões que se apresentavam a exame, na vez dos candidatos. A corrupção era um facto.
Contudo, no princípio do século XIX houve outras aulas de anatomia e cirurgia a funcionar e com grande qualidade, destinadas a formar os cirurgiões militares. Foram particularmente importantes, a de Chaves e a de Elvas.
Houve cirurgiões preparados em Chaves que depois trabalharam e ensinaram no hospital de S. José, outros que foram aqui professores, como houve cirurgiões deste hospital que foram professores em Chaves, nomeadamente o seu primeiro professor, de seu nome Manuel José Leitão.
Também no Brasil se fundaram aulas de anatomia e cirurgia, nomeadamente no Hospital da Misericórdia e no Hospital Militar, ambos no Rio de Janeiro e outra no Hospital da Bahia.
Para frequentar estas aulas de anatomia e cirurgia referidas, já era necessário que os alunos soubessem ler, escrever e contar e que soubessem latim e francês, o que representava um claro e gigantesco progresso na dignificação desta profissão.
O Marquês de Pombal tentou honrar e dignificar a cirurgia e decretou que dessa data em diante as universidades ensinassem igualmente cirurgia e que os licenciados o fossem igualmente em medicina e cirurgia. Foi um importante passo, embora pouco tivesse sido conseguido com esse decreto.
Para que verdadeiramente se iniciasse a caminhada para a equiparação da medicina e da cirurgia, foi necessário esperar por 1825 e pela criação das Régias Escolas de Cirurgia de Lisboa e do Porto, que por sua vez viriam a dar lugar anos mais tarde às Escolas Médico-Cirúrgicas e estas, posteriormente, às Faculdades de Medicina.
Como se formaram estas Régias Escolas?
De uma forma extremamente curiosa e por razões marginais ao poder político. Sucedeu que o Intendente Geral da Polícia, Pina Manique mandara prender o mais importante contratador de tabaco. Essa prisão despertou um grande movimento no sentido de ser conseguida a sua libertação, mas todas as tentativas, mesmo que encabeçadas por gente de condição, não obtiveram qualquer efeito.
Alguém se lembrou então de interceder junto do rei, sendo escolhido para essa tarefa o Cirurgião militar e Cirurgião Mor do Reino, Teodoro Ferreira de Aguiar, de quem o rei era muito amigo. Este cirurgião falou ao rei e este mandou libertar o contratador.
A Corporação dos tabacos agradecida, empenhou-se em agradecer principescamente a Teodoro Ferreira de Aguiar, para o que se prontificaram a oferecer-lhe dez contos de réis. Este não aceitou a oferta e sugeriu que eles dessem o dinheiro ao rei para que com ele se mandassem instalar duas Escolas Régias de Cirurgia.
Teodoro Ferreira de Aguiar conseguiu ainda que a Corporação dos tabacos se encarregasse das despesas daquelas duas escolas enquanto durasse o contracto do tabaco. Quem diria que o tabaco foi o primeiro «sponsor» da cirurgia?
O rei concordou e foi desta forma que nasceram as duas escolas.
Nem sempre os caminhos do progresso e da modernidade passam por grandes decisões, mas apenas pelas cabeças e pela generosidade de uns quantos que têm do bem comum uma ideia correcta.


Sem comentários: