Casou-se como quem vai ao cinema. Foi assim que o Jorge disse, todo envolvido em tristeza e abandono, como o amigo bem notou. Por isso, mais depressa lhe estendeu a mão, no tempo exacto de lhe perguntar --- Como é casar assim? É assim. Assim mesmo, tal como ouviste. Podia não ter entrado em toda essa complicação que se lhe seguiria, se não tivesse havido bilhete para a sessão ou se tivesse perdido o autocarro. Mas, não o perdeu e havia bilhete. Assim ele casou, como quem vai ao cinema, sabendo de antemão que era tudo uma questão de haver, ou não, bilhete. Mas, ele sabia fundamente da sua passividade, do seu passar pelas coisas, do seu arrasto. Sabia muito antes de saber, mas deixava-se arrastar. Sempre à espera do que depois sucederia. Do depois.
O empregado ainda não trouxera as bicas e o bruábruá do Café ouvia-se melhor, agora que se tinham calado. Era uma pausa de necessidade. Jorge sentia-se mais uma vez abatido com o rememorar daquele caso que tão bem conhecia. Era a história de um amigo. Era como se fosse a sua. E, José estava como que alumbrado. O que Jorge lhe contava era qualquer coisa que ele não podia, ou não conseguia, compreender. E, não resistiu a dizê-lo. Não entendo isso. Não pode ter sido assim.
Ouve, José, não te contei nada que possas perceber facilmente. Não foi de matemática que te falei, nem de política económica, nem de cinema, embora te tenha dito que se casou como quem vai ao cinema. Mas, é diferente. Falei-te de um amigo que não conheces, que não entendes e só poderás entender se estiveres atento, disponível para o que te vou contar.
São os dez anos que te separam de mim e dele que to tornam tão confuso, tão opaco. É espantoso como dez pobres anos tanto podem na vida de uma pessoa. Sabes, é isso que marca as gerações. Não me venhas com essa, Jorge. Quais gerações? Deixa-te de tretas. Cada um faz a sua vida. Não é a geração quem lha faz. Só não rio porque me mereces respeito, e deves ter querido dizer outra coisa.
Não rias, não, José. Nem agora, nem depois. Não te vai apetecer fazê-lo, ao ouvires uma história tão triste.
Ele nasceu no norte de Portugal, numa cidade, e bem no centro dela. Já viste coisa mais parva e mais triste do que nascer na província, e nascer numa cidade. E não nascer numa aldeia? Já viste coisa mais parva?
Nasceu bem, em boa casa, em boa cama, boas fraldas. Cresceu bem, ricamente vestido, muito bem alimentado, muito muito bem protegido. E, aos quinze anos, saltou directamente dessa gaiola protectora onde o tinham metido, para a Coimbra daquele tempo, onde as estruturas anquilosadas da Universidade persistiam em continuar e serem resistentes à mudança que se avizinhava. Continuava, sem o saber, dentro da gaiola, embora aparentemente ela estivesse aberta. Era tempo de machismo, de machismo em fase de aluguer. Durante o dia, um contacto leve com as colegas, tímidas, pouco abertas, em todos os sentidos, recatadas, como se dizia. Depois descia a tarde e tudo desaparecia. Começava então a longa noite dos machos-sós.
Talvez comeces a entender que foi assim que começou a sua queda na teia que a aranha lhe montou e teceu rapidamente. Tudo começou ao som de Glenn Miller. Era Carnaval e que melhor época se arranjaria para iniciar tal processo de vida? Foi numa festa, num assalto, como então se dizia. Um assalto. Foi exactamente isso que fizeram à sua vida. Uma mulher nos braços, a música a puxar, a falsa alegria dos fantasiados de alegres, a música que termina e foi então que lhe deram o golpe – a mão que se conserva na mão, e como ela então lhe pareceu quentinha, e ela toda agradável, a saber a bom, a mão na mão, como por engano, para enganar depois, a mão que o vai amarrar, golpe dado, assalto consumado, promessa de beijo ou beijo mesmo, isso ou qualquer outra coisa, a mão na mão, realmente, a apertar, a puxar, a não largar, a ligar, a amarrar, a amarrar até que outra mão se conserve na dele, com outro calor, outra energia, outro toque e lhe permita largar aquela que assim o prende, assim o engana. E, oito anos foram precisos para que isso sucedesse.
Oito anos ele viveu numa sala de cinema, vendo no ecrã o filme da sua vida. Como um espectador. Nada mais que isso.
Já percebeste ou queres que te conte mais?
O empregado ainda não trouxera as bicas e o bruábruá do Café ouvia-se melhor, agora que se tinham calado. Era uma pausa de necessidade. Jorge sentia-se mais uma vez abatido com o rememorar daquele caso que tão bem conhecia. Era a história de um amigo. Era como se fosse a sua. E, José estava como que alumbrado. O que Jorge lhe contava era qualquer coisa que ele não podia, ou não conseguia, compreender. E, não resistiu a dizê-lo. Não entendo isso. Não pode ter sido assim.
Ouve, José, não te contei nada que possas perceber facilmente. Não foi de matemática que te falei, nem de política económica, nem de cinema, embora te tenha dito que se casou como quem vai ao cinema. Mas, é diferente. Falei-te de um amigo que não conheces, que não entendes e só poderás entender se estiveres atento, disponível para o que te vou contar.
São os dez anos que te separam de mim e dele que to tornam tão confuso, tão opaco. É espantoso como dez pobres anos tanto podem na vida de uma pessoa. Sabes, é isso que marca as gerações. Não me venhas com essa, Jorge. Quais gerações? Deixa-te de tretas. Cada um faz a sua vida. Não é a geração quem lha faz. Só não rio porque me mereces respeito, e deves ter querido dizer outra coisa.
Não rias, não, José. Nem agora, nem depois. Não te vai apetecer fazê-lo, ao ouvires uma história tão triste.
Ele nasceu no norte de Portugal, numa cidade, e bem no centro dela. Já viste coisa mais parva e mais triste do que nascer na província, e nascer numa cidade. E não nascer numa aldeia? Já viste coisa mais parva?
Nasceu bem, em boa casa, em boa cama, boas fraldas. Cresceu bem, ricamente vestido, muito bem alimentado, muito muito bem protegido. E, aos quinze anos, saltou directamente dessa gaiola protectora onde o tinham metido, para a Coimbra daquele tempo, onde as estruturas anquilosadas da Universidade persistiam em continuar e serem resistentes à mudança que se avizinhava. Continuava, sem o saber, dentro da gaiola, embora aparentemente ela estivesse aberta. Era tempo de machismo, de machismo em fase de aluguer. Durante o dia, um contacto leve com as colegas, tímidas, pouco abertas, em todos os sentidos, recatadas, como se dizia. Depois descia a tarde e tudo desaparecia. Começava então a longa noite dos machos-sós.
Talvez comeces a entender que foi assim que começou a sua queda na teia que a aranha lhe montou e teceu rapidamente. Tudo começou ao som de Glenn Miller. Era Carnaval e que melhor época se arranjaria para iniciar tal processo de vida? Foi numa festa, num assalto, como então se dizia. Um assalto. Foi exactamente isso que fizeram à sua vida. Uma mulher nos braços, a música a puxar, a falsa alegria dos fantasiados de alegres, a música que termina e foi então que lhe deram o golpe – a mão que se conserva na mão, e como ela então lhe pareceu quentinha, e ela toda agradável, a saber a bom, a mão na mão, como por engano, para enganar depois, a mão que o vai amarrar, golpe dado, assalto consumado, promessa de beijo ou beijo mesmo, isso ou qualquer outra coisa, a mão na mão, realmente, a apertar, a puxar, a não largar, a ligar, a amarrar, a amarrar até que outra mão se conserve na dele, com outro calor, outra energia, outro toque e lhe permita largar aquela que assim o prende, assim o engana. E, oito anos foram precisos para que isso sucedesse.
Oito anos ele viveu numa sala de cinema, vendo no ecrã o filme da sua vida. Como um espectador. Nada mais que isso.
Já percebeste ou queres que te conte mais?
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