Aquele psiquiatra era tido por maluco. Designação que lhe servia como uma luva e de que ele tirava proveito o mais sadia e sabiamente que sabia e podia.
O estatuto de maluco, implantado na sua especialidade de psiquiatra, permitiu-lhe viver como poucos o conseguiram naquela época. Eram tempos de ditadura, a polícia política vigiava tudo e todos, com ouvidos e olhos desmultiplicados por milhares de informadores, que faziam dessa condição um complemento razoável de seus magros ordenados ou graciosa manifestação da sua grande fé no destino de tão grande Pátria.
O que se dizia de menos conveniente, mas não menos verdadeiro, tinha que ser a meia voz e com a garantia de que quem ouvia nadava nas mesmas águas de pensamento e opinião. Era um sistema político vigiado e musculado. A maioria, por menor convicção ou por menos coragem, nem baixo falava. Pura e simplesmente calava-se, transformando-se numa maioria silenciosa e amorfa.
Imagine-se a vantagem de ser maluco quando se é também psiquiatra. Ainda por cima ele era senhor de uma voz potente e de gargalhadas sonoras, quase contagiantes. Eram tais as coisas que ele dizia, que, quem não o conhecesse bem, diria que ele pertencia à polícia política, ou era um provocador a mando dela. Nunca se coibiu de dizer o que pensava, nem nunca escolheu lugar para o fazer ou seleccionou o auditório. O que lhe vinha à boca logo por ela saía, escandalizando uns, amedrontando outros, que, apesar de não serem os senhores daquela voz, lhe tinham emprestado os ouvidos. E ouvir, também era perigoso.
Sucedeu ter sido incomodado algumas vezes, mas não mais que isso, por pouco conhecimento de quem se tratava, logo tudo se esclarecendo quando ele se identificava. Tudo quanto dissesse ou fizesse que se afastasse das normas do regime, era tomado à conta da sua loucura saudável. Alguém dizia, Não o levem a sério. É maluco, e tudo voltava à normalidade instituída.
Não se pense que o proveito da loucura só lhe rendia em termos de não perseguição política. Nada disso. Era assim em todas as coisas.
Faltava à consulta? Está cada vez pior, alguém dizia.
Atendeu dez doentes em menos de uma hora e demorou duas apenas com um doente? Não há nada a fazer. Ele é mesmo assim.
Desobedecia a superiores hierárquicos? É maluco, eu bem vos dizia.
Vocês sabem que ontem durante a consulta a uma senhora, ele acendeu velas e depois benzeu-a com óleos, na testa? E, no fim da consulta disse-lhe—Vá em paz. Está curada. Todos quantos isto ouviam, logo diziam—Está cada vez pior.
Estava cada vez melhor. Isso, sim. Cada vez mais livre, cada vez mais ele, sem limites e sem fronteiras, dominando tudo e todos, regulando o tempo pelo seu próprio relógio biológico, uma voz cada vez mais potente, uma gargalhada cada vez mais feliz e contagiante.
Ninguém como ele definia em traços curtos e exactos a personalidade dos colegas. E, cada vez mais, todos receavam a sua língua viperina, que em segundos arrasava a credibilidade de um colega tido por perfeito. Que se saiba nunca nenhum pediu justificações ou lavou sua honra. Não vale a pena perder tempo e cuspo com tal indivíduo.
Todos? Aqui é que a questão se punha. Alguns dos que com ele privavam mais assídua e fraternalmente, sabiam bem que não era assim e que ele era senhor de grande estabilidade psíquica e emocional, de grande capacidade de raciocínio e de análise lógica, de uma mente sã, capaz de fazer inveja ao ser mais normal.
Ele era tão anormalmente normal, que era capaz de reverter a seu favor o uso que fazia de emoções, gestos, atitudes e palavras, fazendo que os outros pensassem que ele era maluco, quando, na verdade, não o era e em cada instante analisava, quase de uma forma freudiana, o comportamento e os sentimentos de quem o rodeava. Rapidamente sabia os fracos de cada um e, com habilidade e inteligência, usava esse conhecimento para desfazer vaidades, convencimentos e atitudes.
Era um provocador, por excelência. Tirava da vida o melhor e acoitava-se à sombra do rótulo que, os tidos por normais, gostavam de lhe colocar. Ai, eu é que sou o maluco? Quem com ele privava, sabia que ele se perguntava isso muitas vezes, como inequívoca afirmação de lucidez e coragem.
Eram inúmeras as histórias que se contavam a seu respeito, mas convinha acreditar apenas nas que ele contava de si próprio. Essas eram autênticas, as outras tinham tanto de verdade como a sua apregoada loucura. Mas, algumas havia que toda a gente conhecia e que contadas assim, de uma forma seca e desarticulada da sua personalidade e da sua superior inteligência, punham efectivamente em causa a sua idoneidade mental, para já não falar da sua idoneidade médica.
Lembro-me, por exemplo, que era voz corrente a forma como ele media a tensão arterial a quem lho solicitava. Sabedor que era dos inúmeros hipocondríacos que lhe passavam pelas mãos, quando, por razões militares, teve que exercer clínica geral para além da psiquiatria de sua especialidade, desmontava esses apetites hipocondríacos de uma forma simples, para ele, e igualmente tranquilizante para o candidato a doente. Possuía em cima da sua secretária um dedal de costura e quando solicitado para medir a tensão arterial, metia lentamente o dedal no seu dedo indicador direito, colocava-o correctamente na radial e dizia – está normal. Tirava o dedal, orgulhosamente, por mais uma missão cumprida.
E quando os paraquedistas «adoeciam» subitamente, apanhados por um qualquer virus antimilitar e anti operações especiais, ele tinha o remédio certo. Mandava-os formar em linha e dar as mãos uns aos outros. Colocava delicadamente um termómetro na axila do primeiro, anunciava em voz alta a temperatura encontrada e dizia calmamente que todos estavam bons e podiam partir para a operação especial.
Dizia ele que media a temperatura pelo processo dos vasos comunicantes... Era ele o maluco? Mas, não era ele quem duma forma, assim simples e divertida, desfazia pelo ridículo a tentativa de fuga ao dever de um bando de militares super preparados e pagos para isso?
Alguém teria sido capaz de cobrir de ridículo todo um País e uma organização militar, como ele o fez quando foi incumbido, pelo Poder instituído, de fazer testes psicotécnicos aos candidatos a pilotos da Força Aérea? Bem ele argumentou, de uma forma séria, que não havia condições para tal fazer, uma vez que não se dispunha da bateria de testes necessários e muito menos de preparação e experiência necessárias e ainda menos de psicólogos habilitados. Era evidente que concordava com a realização dos testes, mas só depois de uma equipa montada e que soubesse o que fazia.
Mas, o Poder achou que não era preciso e o psiquiatra que se desenrascasse. Foi o que ele fez. A cada candidato distribuía uma folha de jornal e mandava-o fazer aviões de papel, chegar à janela e atirá-los. Os que voassem bem, mostravam que o lançador era pessoa determinada e até um avião de papel fazia voar. Os outros, bem os outros, nem os de papel sabiam atirar.
É maluco, disseram. Mas, quem conseguiria mais ridículo e faria com que, no futuro, se organizasse o Gabinete Psico–Técnico? Era ele o maluco?
Mas uma das histórias que se contavam que mais fazia sorrir quem a ouvia, era a história do electroencefalograma.
Numa das consultas de psiquiatria infantil que ele fazia, chegado ao termo de uma das consultas, feitas as recomendações à criança e à mãe que a acompanhava, quando esta e o filho se aproximavam da porta de saída do gabinete de consulta, a mãe voltou atrás e disse-lhe – O senhor doutor desculpe, mas não seria melhor fazer um electroencefalograma ao menino?
O psiquiatra ouviu, fez uma curta pausa e calmamente disse – Tem toda a razão, minha senhora. Vem cá, Alberto.
O menino aproximou-se da secretária do psiquiatra, e este disse—chega-te um pouquinho mais e, delicadamente, colocou-lhe um dedo na testa. Com a mão direita empunhando a esferográfica, fez uma série de riscos no bloco de notas e sempre calmamente disse – Está normal, minha senhora. Vá descansada.
Como teria reagido outro psiquiatra, dos ditos normais, à sugestão da mãe do menino? Teria provavelmente reagido mal; teria reivindicado a sua qualidade de expert da matéria, teria chamado a atenção para a sua qualidade de médico, para a impertinência da mãe, para um sem número de coisas, que só conduziriam à insatisfação da mãe, à manutenção da sua dúvida permanente sobre a não realização do electroencefalograma e à revolta do médico pela invasão indevida do seu campo de acção. Todos saíam a perder. O que fez o maluco? Satisfez a dúvida da mãe, não criou stress a si próprio e ficou mais uma vez a rir-se da estupidez humana.
Será ser maluco conhecer bem a psicologia e a forma de lidar com os outros, sem comprometer a relação necessária com o doente, nem a forma correcta de tratamento? O que é que este fait divers alterou na medicação que anteriormente tinha feito? Que problemas criou? Nenhuns. Mas, se assim não tivesse feito, ainda hoje a mãe do menino diria—Devia ter feito um electroencefalograma.
Aquele psiquiatra era tido por maluco.
O estatuto de maluco, implantado na sua especialidade de psiquiatra, permitiu-lhe viver como poucos o conseguiram naquela época. Eram tempos de ditadura, a polícia política vigiava tudo e todos, com ouvidos e olhos desmultiplicados por milhares de informadores, que faziam dessa condição um complemento razoável de seus magros ordenados ou graciosa manifestação da sua grande fé no destino de tão grande Pátria.
O que se dizia de menos conveniente, mas não menos verdadeiro, tinha que ser a meia voz e com a garantia de que quem ouvia nadava nas mesmas águas de pensamento e opinião. Era um sistema político vigiado e musculado. A maioria, por menor convicção ou por menos coragem, nem baixo falava. Pura e simplesmente calava-se, transformando-se numa maioria silenciosa e amorfa.
Imagine-se a vantagem de ser maluco quando se é também psiquiatra. Ainda por cima ele era senhor de uma voz potente e de gargalhadas sonoras, quase contagiantes. Eram tais as coisas que ele dizia, que, quem não o conhecesse bem, diria que ele pertencia à polícia política, ou era um provocador a mando dela. Nunca se coibiu de dizer o que pensava, nem nunca escolheu lugar para o fazer ou seleccionou o auditório. O que lhe vinha à boca logo por ela saía, escandalizando uns, amedrontando outros, que, apesar de não serem os senhores daquela voz, lhe tinham emprestado os ouvidos. E ouvir, também era perigoso.
Sucedeu ter sido incomodado algumas vezes, mas não mais que isso, por pouco conhecimento de quem se tratava, logo tudo se esclarecendo quando ele se identificava. Tudo quanto dissesse ou fizesse que se afastasse das normas do regime, era tomado à conta da sua loucura saudável. Alguém dizia, Não o levem a sério. É maluco, e tudo voltava à normalidade instituída.
Não se pense que o proveito da loucura só lhe rendia em termos de não perseguição política. Nada disso. Era assim em todas as coisas.
Faltava à consulta? Está cada vez pior, alguém dizia.
Atendeu dez doentes em menos de uma hora e demorou duas apenas com um doente? Não há nada a fazer. Ele é mesmo assim.
Desobedecia a superiores hierárquicos? É maluco, eu bem vos dizia.
Vocês sabem que ontem durante a consulta a uma senhora, ele acendeu velas e depois benzeu-a com óleos, na testa? E, no fim da consulta disse-lhe—Vá em paz. Está curada. Todos quantos isto ouviam, logo diziam—Está cada vez pior.
Estava cada vez melhor. Isso, sim. Cada vez mais livre, cada vez mais ele, sem limites e sem fronteiras, dominando tudo e todos, regulando o tempo pelo seu próprio relógio biológico, uma voz cada vez mais potente, uma gargalhada cada vez mais feliz e contagiante.
Ninguém como ele definia em traços curtos e exactos a personalidade dos colegas. E, cada vez mais, todos receavam a sua língua viperina, que em segundos arrasava a credibilidade de um colega tido por perfeito. Que se saiba nunca nenhum pediu justificações ou lavou sua honra. Não vale a pena perder tempo e cuspo com tal indivíduo.
Todos? Aqui é que a questão se punha. Alguns dos que com ele privavam mais assídua e fraternalmente, sabiam bem que não era assim e que ele era senhor de grande estabilidade psíquica e emocional, de grande capacidade de raciocínio e de análise lógica, de uma mente sã, capaz de fazer inveja ao ser mais normal.
Ele era tão anormalmente normal, que era capaz de reverter a seu favor o uso que fazia de emoções, gestos, atitudes e palavras, fazendo que os outros pensassem que ele era maluco, quando, na verdade, não o era e em cada instante analisava, quase de uma forma freudiana, o comportamento e os sentimentos de quem o rodeava. Rapidamente sabia os fracos de cada um e, com habilidade e inteligência, usava esse conhecimento para desfazer vaidades, convencimentos e atitudes.
Era um provocador, por excelência. Tirava da vida o melhor e acoitava-se à sombra do rótulo que, os tidos por normais, gostavam de lhe colocar. Ai, eu é que sou o maluco? Quem com ele privava, sabia que ele se perguntava isso muitas vezes, como inequívoca afirmação de lucidez e coragem.
Eram inúmeras as histórias que se contavam a seu respeito, mas convinha acreditar apenas nas que ele contava de si próprio. Essas eram autênticas, as outras tinham tanto de verdade como a sua apregoada loucura. Mas, algumas havia que toda a gente conhecia e que contadas assim, de uma forma seca e desarticulada da sua personalidade e da sua superior inteligência, punham efectivamente em causa a sua idoneidade mental, para já não falar da sua idoneidade médica.
Lembro-me, por exemplo, que era voz corrente a forma como ele media a tensão arterial a quem lho solicitava. Sabedor que era dos inúmeros hipocondríacos que lhe passavam pelas mãos, quando, por razões militares, teve que exercer clínica geral para além da psiquiatria de sua especialidade, desmontava esses apetites hipocondríacos de uma forma simples, para ele, e igualmente tranquilizante para o candidato a doente. Possuía em cima da sua secretária um dedal de costura e quando solicitado para medir a tensão arterial, metia lentamente o dedal no seu dedo indicador direito, colocava-o correctamente na radial e dizia – está normal. Tirava o dedal, orgulhosamente, por mais uma missão cumprida.
E quando os paraquedistas «adoeciam» subitamente, apanhados por um qualquer virus antimilitar e anti operações especiais, ele tinha o remédio certo. Mandava-os formar em linha e dar as mãos uns aos outros. Colocava delicadamente um termómetro na axila do primeiro, anunciava em voz alta a temperatura encontrada e dizia calmamente que todos estavam bons e podiam partir para a operação especial.
Dizia ele que media a temperatura pelo processo dos vasos comunicantes... Era ele o maluco? Mas, não era ele quem duma forma, assim simples e divertida, desfazia pelo ridículo a tentativa de fuga ao dever de um bando de militares super preparados e pagos para isso?
Alguém teria sido capaz de cobrir de ridículo todo um País e uma organização militar, como ele o fez quando foi incumbido, pelo Poder instituído, de fazer testes psicotécnicos aos candidatos a pilotos da Força Aérea? Bem ele argumentou, de uma forma séria, que não havia condições para tal fazer, uma vez que não se dispunha da bateria de testes necessários e muito menos de preparação e experiência necessárias e ainda menos de psicólogos habilitados. Era evidente que concordava com a realização dos testes, mas só depois de uma equipa montada e que soubesse o que fazia.
Mas, o Poder achou que não era preciso e o psiquiatra que se desenrascasse. Foi o que ele fez. A cada candidato distribuía uma folha de jornal e mandava-o fazer aviões de papel, chegar à janela e atirá-los. Os que voassem bem, mostravam que o lançador era pessoa determinada e até um avião de papel fazia voar. Os outros, bem os outros, nem os de papel sabiam atirar.
É maluco, disseram. Mas, quem conseguiria mais ridículo e faria com que, no futuro, se organizasse o Gabinete Psico–Técnico? Era ele o maluco?
Mas uma das histórias que se contavam que mais fazia sorrir quem a ouvia, era a história do electroencefalograma.
Numa das consultas de psiquiatria infantil que ele fazia, chegado ao termo de uma das consultas, feitas as recomendações à criança e à mãe que a acompanhava, quando esta e o filho se aproximavam da porta de saída do gabinete de consulta, a mãe voltou atrás e disse-lhe – O senhor doutor desculpe, mas não seria melhor fazer um electroencefalograma ao menino?
O psiquiatra ouviu, fez uma curta pausa e calmamente disse – Tem toda a razão, minha senhora. Vem cá, Alberto.
O menino aproximou-se da secretária do psiquiatra, e este disse—chega-te um pouquinho mais e, delicadamente, colocou-lhe um dedo na testa. Com a mão direita empunhando a esferográfica, fez uma série de riscos no bloco de notas e sempre calmamente disse – Está normal, minha senhora. Vá descansada.
Como teria reagido outro psiquiatra, dos ditos normais, à sugestão da mãe do menino? Teria provavelmente reagido mal; teria reivindicado a sua qualidade de expert da matéria, teria chamado a atenção para a sua qualidade de médico, para a impertinência da mãe, para um sem número de coisas, que só conduziriam à insatisfação da mãe, à manutenção da sua dúvida permanente sobre a não realização do electroencefalograma e à revolta do médico pela invasão indevida do seu campo de acção. Todos saíam a perder. O que fez o maluco? Satisfez a dúvida da mãe, não criou stress a si próprio e ficou mais uma vez a rir-se da estupidez humana.
Será ser maluco conhecer bem a psicologia e a forma de lidar com os outros, sem comprometer a relação necessária com o doente, nem a forma correcta de tratamento? O que é que este fait divers alterou na medicação que anteriormente tinha feito? Que problemas criou? Nenhuns. Mas, se assim não tivesse feito, ainda hoje a mãe do menino diria—Devia ter feito um electroencefalograma.
Aquele psiquiatra era tido por maluco.
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