quinta-feira, novembro 17, 2005

grande teatro da maré viva

Raramente o tempo está comigo. Só ocasionalmente coincidimos. Mas, hoje, último dia em Porto Novo, aqui sentado na varanda do Grande Teatro Maré Viva de Santa Cruz, tenho a boca de cena toda enevoada como se estivesse à espera de um qualquer drama de Shakespeare. O sol pressente-se para além da neblina e sabe-se ou adivinha-se que dentro em breve a atravessará e dará cabo dela por uma vez.
Mas, neste momento e é este que interessa, o presente, parte mais importante de quem já tem pouco futuro, a visão é única e surpreendente. Os figurantes, em fato de banho, recortam-se em fundos de areia pouco nítidos, contra cenários listrados de barracas de praia, contra a espuma incessante das ondas que rebentam.
Todos nesta praia de bruma se comportam como se a não houvesse e todos mexem, todos se exercitam, para entrarem perfeitos e preparados na fase esplendorosa do sol que adivinham e aqui os trouxe à cena.
Neste momento já se distinguem bem as formas e as cores. Apenas o mar se mantém quase invisível, dando a ver de si apenas o seu espraiar-se, o descanso final da energia da onda.
As barracas têm o ar aprumado de pano esticado sobre estacas, mas muitas há com o pano frontal atirado sobre a cúpula, com um aspecto de cama acabada de usar.
A bandeira vermelha que o banheiro hasteou, é apenas uma bandeira de precaução, natural. O mar adivinha-se bom, mas quem mergulhar e ficar aflito é homem perdido pois ninguém o verá, ninguém saberá das suas aflições. Daí que o cauteloso banheiro, não preocupado com o que se passar, mas com o que se poderá passar com ele, hasteou a vermelha, cautelosamente português.
Aqui na loggia, uns lêem, outros trabalham, como o intelectual da mesa ao lado, professor de uma qualquer universidade técnica. E eu tento escrever. Tento, como sempre fiz.
Mas o pastel de nata que acabo de comer, chegou em sua cama de estanho, oferecendo-se à minha gula e lembrando-me, em bouquet de gostos, que ainda há coisas boas.

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